Os amantes do futebol podem ter vibrado com uma final de Copa do Mundo inédita ou podem ter lamentado a ausência em campo de seleções com uma penca de títulos mundiais. O fato é que a decisão entre França e Croácia mostrou que o futebol também pode ser visto como um indicador demográfico, como uma expressão do fluxo humano pelos continentes, como um emblema de geopolítica. Na França, como talvez em nenhum outro país, ir bem ou mal em um Mundial virou tema de vastas discussões políticas, de inevitáveis conclusões sociológicas. Os bleus são um carbono das ondas de imigração, dos embates sociais que atravessam a nação desde o fim da II Guerra — na Croácia é diferente, e celebra-se muito mais o feito esportivo do que seu significado mais amplo. Segundo o historiador Yvan Gastaut, ouvido pelo jornal Le Monde, “a equipe francesa, desde a conquista de 1998, virou o lugar central para discutir as questões interculturais, em que a vitória representa o sucesso da integração e a derrota, o fracasso dos vínculos entre as pessoas”. Ou seja: o futebol não é só a plataforma das paixões esportivas; é também o terreno das paixões políticas.
Há exatos vinte anos, depois dos 3 a 0 contra o Brasil, da consagração do filho de argelinos Zinedine Zidane, um mote tomou as ruas de Paris. Era o black, blanc, beur (preto, branco e árabe) em oposição ao clássico bleu, blanc, rouge das cores da bandeira francesa. Era uma festiva referência à miscigenação da equipe, composta de jogadores de origens diversas, filhos de imigrantes de países africanos, de ex-colônias. Era caminho sem volta, o da diversidade, retrato das transformações demográficas pelas quais passava a França. Mas, como bem anotou o irreverente Eric Cantona, ex-jogador e agudo comentarista, “quando ganhavam eles eram os blacks, blancs e beurs, mas ao perder viravam bandidos do gueto”. Quando eram campeões, eles representavam a França democrática, tradicionalmente afeita a receber estrangeiros, a pátria dos direitos humanos, aberta e generosa. Quando eram vencidos, porém, eles eram os párias que se recusavam a aceitar as regras do cotidiano, eram mal-vindos, eram os “outros” da célebre frase de Jean-Paul Sartre, aos quais se atribui o inferno.
Essa montanha-russa de humores não demorou a aparecer. Em outubro de 2001, apenas três anos depois da festança ecumênica que invadiu a Avenida Champs-Élysées na conquista do primeiro título mundial da França, decidiu-se fazer um amistoso em Paris. O jogo era França contra Argélia. Imaginava-se que, quarenta anos depois da sanguinária guerra de independência argelina, durante a qual os franceses expuseram toda a sua crueldade, as feridas tivessem sido fechadas com a genialidade de Zidane, mas elas continuavam abertas. A torcida no Stade de France, majoritariamente de filhos de argelinos, vaiou a Marselhesa. O jogo terminou antes da hora, com a invasão do gramado. O futebol podia até refletir o tecido francês, mas comprovou-se ali que, obviamente, não seria capaz de superar problema algum. Nas palavras do ex-presidente François Hollande, entrevistado para um documentário sobre o assunto: “O esporte foi mais rápido que a sociedade”.
Na atual seleção de Antoine Griezmann (pai alemão, mãe portuguesa) e Kylian Mbappé (pai camaronês, mãe argelina), dezessete atletas têm origem em famílias do Congo, Mali, Camarões, Senegal, entre outros países africanos e ex-colônias — mas são, como exige a regra, de nacionalidade francesa. A riqueza da miscigenação, que leva aos gramados o que a vida fora deles impõe, não é vacina contra a xenofobia. Basta lembrar o episódio que envolveu o atacante do Real Madrid Karim Benzema, que foi educativamente subtraído dos bleus depois de ser flagrado chantageando um colega com um filme pornográfico. Não demorou para que Benzema fosse vítima de insultos e ataques grosseiros ligados à sua ascendência, ainda que suas bobagens nada tivessem a ver com suas raízes.
O desconforto com os imigrantes esteve sempre presente. O maior jogador francês antes da chegada de Platini, Zidane e, agora, Mbappé foi Raymond Kopa — Kopa, de Kopaszewski, cujos avós paternos eram poloneses e tinham fugido para a França logo depois da I Guerra. Quando ele começou a lutar pelos direitos dos jogadores, por melhores salários e melhores condições de transferência de clube para clube, houve quem apontasse o dedo para seus antepassados polacos.
A seleção da França, com seu excelente desempenho dentro de campo, pôde mostrar que o futebol só tem a ganhar com a miscigenação. A Inglaterra, que foi agora muito mais longe do que nas últimas Copas, também levou a campo uma seleção miscigenada. Mas apenas ingênuos poderão esperar que a multiplicidade étnica represente a inauguração de um novo tempo, mais aberto e tolerante. De modo geral, a Europa continua incomodada com as ondas de imigrantes — ainda que o fluxo tenha se reduzido drasticamente neste ano —, e o futebol não vai mudar esse cenário.
Mesmo na Alemanha, que vinha adotando uma política altamente generosa com os imigrantes — e cuja seleção também tinha sua dose de miscigenação —, a chanceler Angela Merkel acaba de ser forçada a endurecer com os estrangeiros que chegam ao país pelas suas fronteiras. O que ninguém pode negar é que o quebra-cabeça geopolítico que se vê dentro do gramado, numa disputa de Copa do Mundo, de país contra país, torna o futebol do século XXI um espetáculo à parte. Como disse Hollande, a bola chegou antes.
Publicado em VEJA de 18 de julho de 2018, edição nº 2591