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A fala não tem lugar

Notas sobre um conceito-puro-tédio do mundo cultural

Por João Cezar de Castro Rocha
Atualizado em 22 set 2017, 06h00 - Publicado em 22 set 2017, 06h00

– O mundo da cultura foi dominado por uma falácia que, ecumênica, afeta a todo o espectro ideológico: lugar de fala. Conceito-puro-tédio, irmão das patrulhas, que retornaram com vigor no cenário atual.

– No plano político, a noção de lugar de fala já é tautológica, pois aposta na equivalência ingênua entre corpo e identidade. Contudo, compreende-se o ardil. Trata-se de investir numa espécie de mimetismo coletivo, que triunfa quando o outro é silenciado pelo ruído alheio. Estratégia que inicialmente vicejou no universo das redes sociais, mas que migrou nos últimos anos para todas as esferas do cotidiano.

– Na primeira cena de Otelo, o malicioso Iago encareceu a miséria dessa ideia (cito a tradução impecável de Lawrence Flores Pereira): “Pois se as minhas ações exteriores mostrarem / Meus atos inatos, meu vero coração / Exposto à clara luz, vai ser rápido até / Que eu entregue às gralhas meu coração desnudo, / Pra que o espicacem. Eu não sou o que sou”.

– Cultura exige movimento, direito inalienável à incoerência, pensar isto agora e aquilo logo a seguir. Não há arte instigante que não seja heraclitiana. Autoritário, o lugar de fala promete que sempre mergulharemos no mesmo rio! Nas “pulsações” inquietantes de Um Sopro de Vida, Clarice Lispector deu-nos régua e compasso: “Estou com a impressão de que ando me imitando um pouco. O pior plágio é o que se faz de si mesmo”.

I am not what I am — sentencia o alferes. E não apenas por ser maquiavélico, mas porque, ao fim e ao cabo, também é nossa a condição de Iago. Ninguém se reduz a uma única identidade, pensa sempre de idêntica forma, embriaga-se com o mesmo licor uma e outra vez. A fala, por isso, não dispõe de lugar, porém de circunstâncias — múltiplas e irredutíveis a um monótono jogo de espelhos. Na arte, o sal da obra é a diversidade; pelo contrário, lugar de fala é camisa de força, mordaça e forca.

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– Precisamos resgatar a fascinante análise dos primórdios da cultura, tal como proposta por Arnold Gehlen em Der Mensch: Seine Natur und Seine Stellung in der Welt (O Homem: Sua Natureza e Seu Lugar no Mundo). Eis sua hipótese: o homem é o único animal inespecífico por definição; ele não dispõe de qualidades fisiológicas próprias. Isso não é tudo: a espécie humana tem a maturação mais lenta do reino animal. As crianças dependem por longos anos de seus pais para sobreviver. A cultura teria surgido como uma resposta complexa à vulnerabilidade diante do mundo. A ausência de lugar definido permitiu à espécie humana fugir de nichos estreitos e desrespeitar todas as fronteiras.

– Nas fábulas de Esopo, La Fontaine e Charles Perrault, essa intuição comparece pelo avesso, pois determinados animais são apresentados como a tipificação de vícios ou de virtudes: a raposa é sagaz; a formiga, trabalhadora; a cigarra, imprudente; o cão, fiel. Isto é, no reino encantado do “era uma vez”, a cada animal se atribui um lugar de fala. E como falam…

– Vamos parar de escutá-los?

Publicado em VEJA de 27 de setembro de 2017, edição nº 2549

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