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A estrela oculta

Inspirado na vida de um ator que interpretou o Bozo, 'Bingo — O Rei das Manhãs' é uma dessas erupções criativas que às vezes chacoalham o cinema nacional

Por Isabela Boscov Atualizado em 25 ago 2017, 15h29 - Publicado em 19 ago 2017, 06h00

Há que respeitar um ator como este: encarnando um abajur erótico (!) numa pornochanchada, fazendo uma ponta de uma fala só na novela ou vestindo fantasia de palhaço idêntica à dos 99 outros candidatos a apresentador de programa infantil, Augusto Mendes (Vladimir Brichta) é sempre os mesmos 100% de empenho, energia e concentração. Para ele, qualquer papel é um papel; algo em que se devem cravar os dentes até que se opere aquela transubstanciação do intérprete em uma força incontrolável. Pois Bingo — O Rei das Manhãs (Brasil, 2017), que estreia no país nesta quinta-feira, promete e cumpre. Diante do produtor americano irritado com a fiada de incompetentes que viu até ali, Augusto — que entrou por acaso na fila do teste — decide que aquele é o dia do seu basta. Deixa vir o íncubo que vive dentro dele e que cada vez mais o atormenta e metamorfoseia-se em Bingo — um palhaço traquinas e insolente, irreverente e raivoso, que põe o estúdio abaixo com sua performance. O americano não entende uma palavra do que ele diz (ainda bem), mas compreende a reação que provoca: Augusto agora é Bingo, destinado a levar a emissora meio mambembe à liderança de audiência. Mas que destino perverso: por contrato, ninguém jamais deverá saber quem é o homem por trás do palhaço. Esse ator que repentinamente ficou sem rosto nem nome, e do qual tanta popularidade emana sem que ele possa usufruir algum reconhecimento, não vai suportar a contradição, e vai ruir. E que calamidade espetacular ele é.

Interpretado por Brichta num genuíno tour de force, em um desempenho que conjuga precisão técnica com uma turbulência irresistível, Augusto/Bingo é inspirado em Arlindo Barreto, que foi o palhaço Bozo do SBT entre 1984 e 1986, no programa que conduziu a emissora de Silvio Santos ao primeiro lugar do ibope matinal (e também vespertino: a certa altura, Bozo chegou a ficar oito horas seguidas no ar, num revezamento de intérpretes sob a fantasia do palhaço). Filho da atriz e vedete Márcia de Windsor (no filme rebatizada de Marta e vivida por Ana Lucia Torre), Barreto cresceu ansiando pelos holofotes. As condições em que seu desejo foi atendido, no entanto, provaram-se irreconciliáveis com sua sede de aprovação. Barreto, que já tinha um gostinho pela doideira, tentou remendar a ruptura com quantidades prodigiosas de sexo, álcool e cocaína (“70% de inspiração e 30% de uísque” era o seu lema). Varreu de sua vida tudo o que não fosse Bozo ou noitada, incluindo o filho pequeno, que adorava (interpretado pelo ótimo Cauã Martins). Bateu no fundo do poço, e daí mais fundo ainda, antes de conseguir se pôr nos trilhos (hoje é pastor, e às vezes se apresenta como Bozo em cultos evangélicos).

Pelo tipo de criatura que Bingo — O Rei das Manhãs é — brasileiríssima, arrojada, exuberante e perfeitamente confortável em não separar o cômico do desesperador —, é com Cidade de Deus que se pode traçar sua afinidade entre a produção nacional das duas últimas décadas. Foi Cidade de Deus, de fato, que inaugurou a carreira de Daniel Rezende, indicado ao Oscar de montagem pelo filme em 2004. Com Bingo, Rezende faz sua estreia na direção de longa-metragem como se o set de filmagem, e não a salinha de edição, tivesse sido sempre seu hábitat: dono de um estilo coesivo e dinâmico, ele imprime um ritmo puxado ao filme e põe todo o elenco no mesmo embalo, de Leandra Leal, excelente como a produtora evangélica que desaprova Augusto mas o adora, a Augusto Madeira como o cameraman baladeiro e Emanuelle Araújo como Gretchen (a única personagem que conserva seu nome real) — cujo rebolado não muito apropriado para menores ajudou a jogar o ibope de Bozo nas alturas.

30% de uísque – Augusto: o dilema da pessoa que se fundiu à persona (João Naves/)

Munido do escrutínio típico de montador, Rezende usa tudo o que tem à mão como componente narrativo, e tira de cena qualquer coisa que não sirva a esse propósito. A recriação da São Paulo dos anos 80 é calibrada à perfeição — “para não exagerar no exagero”, disse o diretor a VEJA —, vívida mas sem preciosismo. Quando algum elemento é usado de maneira ostensiva (por exemplo, o Fiat 147 azul-calcinha que Augusto troca por um Opala SS laranja com o primeiro salário de Bingo ou o apartamento que ele compra no cobiçado Edifício Saint Honoré, na Avenida Paulista), é porque o protagonista necessita que este expresse o que ele próprio não pode revelar.

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Bingo, entretanto, não é exatamente Bozo, assim como Augusto não é inteiramente Arlindo. Em parte para não tropeçarem em questões de marcas e direitos, e também porque isso lhes daria a liberdade necessária, Rezende e o roteirista Luiz Bolognesi criam uma versão saturada do protagonista: ver Bingo no estúdio de TV é uma experiência da qual o espectador não há de se esquecer tão cedo, pela euforia e pela incredulidade que ela é capaz de causar. Rezende e Bolognesi divertem-se à beça, também, trocando os nomes. A Rede Globo vira Mundial, a “dama prateada” da audiência, no lugar do então popular apelido de “Vênus platinada”. Baixam a resolução da imagem nos créditos iniciais para imitar a qualidade precária dos videocassetes, enfiam um certificado de censura batido a máquina na abertura e deleitam o espectador com uma infinidade de brincadeiras com a cultura pop brasileira da época — brincadeiras que acrescentam à história, frise-se, não referências inseridas nela a esmo. (A trilha sonora, aliás, deve ser disponibilizada no Spotify, incluindo faixas que não entraram no corte final mas serviram de inspiração ao filme.)

Um dos aspectos mais revigorantes de Bingo é o capital narrativo que ele enxerga no trabalho do protagonista. Numa dramaturgia em que, nas novelas e com frequência também nos filmes, as cozinheiras não preparam comida, os motoristas não dirigem, os médicos de emergência ridiculamente auscultam o paciente com ar sério e os empresários são vistos em seu escritório apenas em encontros dramáticos com rivais ou amantes, Bingo é uma exceção — como o foi, por exemplo, Tropa de Elite: o roteiro que deposita sua confiança na ideia de que cada um é em grande medida definido pelo que faz, e por como o faz. Esse fazer, assim, tem de estar retratado com conhecimento e verossimilhança, porque é só nele que se encontrarão certos dados essenciais sobre a pessoa de que se está tratando. Bingo investe tempo na rotina do estúdio, nas marcações do cenário, nas primeiras transmissões malsucedidas do programa, nas aulas que Augusto vai tomar com um palhaço de verdade (Domingos Montagner, morto em 2016, com cuja companhia, La Mínima, Brichta se preparou para o papel).

E assim Bingo — O Rei das Manhãs atinge o âmago do drama que lacera o protagonista: não apenas o anonimato, mas o fato de que, na pele do palhaço, Augusto afinal descobre quem é, e a qual propósito serve — e não mais consegue ser Augusto sem ser também integralmente Bingo.

Publicado em VEJA de 23 de agosto de 2017, edição nº 2544

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