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A estatal da maconha

Presidente do órgão do governo uruguaio que controla produção, venda e uso da Cannabis diz que legalização é a política de drogas mais segura que existe

Por Guillermo Draper, de Montevidéu
Atualizado em 23 fev 2018, 06h00 - Publicado em 23 fev 2018, 06h00

Diego Olivera, de 38 anos, assumiu o cargo de secretário-geral da Junta Nacional de Drogas (JND) do Uruguai quando a lei que regulava o consumo de maconha no país ainda não havia sido aplicada integralmente. Era junho de 2016, e já fazia três anos que o Parlamento aprovara a medida. O governo não demonstrava muito interesse em adotar um dos aspectos mais controvertidos da lei: a venda de maconha nas farmácias. Um ano depois, Olivera assumiu também a presidência do Instituto de Regulação e Controle da Cannabis, vinculado à JND, e conseguiu que algumas farmácias começassem a vender maconha recreativa a milhares de uruguaios registrados. Atualmente, há 21 559 cidadãos cadastrados. Cada um deles pode comprar até 40 gramas da droga por mês. Além disso, há 8 145 registrados para cultivar até seis plantas de Cannabis em casa e 78 clubes qualificados para fornecer a erva para fins medicinais a um máximo de 45 sócios. “A regulamentação da maconha veio para ficar”, disse Olivera a VEJA na entrevista a seguir.

Até agora, qual lição se pode tirar da legalização da maconha no Uruguai?  Uma das principais lições é que é possível regular o mercado de Cannabis e que isso não leva a uma situação disruptiva da sociedade. Quase 50 000 uruguaios, de diferentes idades e regiões do país, têm acesso à maconha por uma das três vias legais (farmácias, plantio doméstico e clubes especializados). Não ocorreram episódios inconvenientes ou críticos do ponto de vista da segurança nem da saúde pública. Ou seja, a sociedade uruguaia não entrou em colapso por ter regulamentado a maconha. Ao contrário, a imagem que fica é que essa se provou a política mais segura de todas as que se tentaram até hoje. Isso se reflete nas pesquisas de opinião pública. Há seis meses, 70% dos uruguaios eram contra a medida. Hoje, 50% rechaçam a legalização. A proporção ainda é alta, mas percebe-se uma tendência de reversão da percepção negativa. É claro que existem críticas sobre se estamos fazendo as coisas no ritmo adequado, se deveríamos aprofundar o modelo e se o peso regulatório ou de controle do mercado deveria ser mais frouxo. Mas a percepção é que tomamos o caminho certo.

A legalização da maconha reduziu a criminalidade no Uruguai? Neste momento e com os dados disponíveis, ainda não é possível afirmar que houve um impacto direto na queda da criminalidade. A violência social é um fenômeno complexo e estrutural demais para que se possa assegurar que em um prazo tão curto de implementação da lei se obtenha uma diminuição nos crimes. Nesse período, os homicídios caíram, os roubos violentos também, e a violência de gênero se manteve nos mesmos níveis. Paralelamente, houve uma reestruturação da polícia e das políticas de segurança, o que também influencia os indicadores de segurança. Por isso, ainda não é possível isolar o efeito da regulamentação da maconha sobre esses dados.

O que falta para avaliar o impacto da lei? Será possível vê-lo sobretudo na violência associada ao narcotráfico e na quantidade de pessoas processadas por delitos de drogas, que levam a um encarceramento massivo por infrações às vezes pequenas e à superlotação das cadeias. Essas pessoas passam a fazer parte de um ciclo de violência ou da “escola do crime” das prisões e acabam saindo pior do que quando entraram. É o caso, por exemplo, de cidadãos que eram processados por cultivar Cannabis para uso pessoal. Se houver uma queda nos indiciamentos por tráfico, teremos um indicador interessante de como a regulamentação da maconha contribui para a melhoria da segurança pública.

“A política de drogas proibicionista, que exige fortes medidas de coerção, fracassou. Em nenhum país essa estratégia diminuiu os impactos na saúde pública”

A venda de maconha em farmácias fez o crime organizado perder mercado? Graças à lei, algo como 30% dos usuários de maconha não recorrem mais ao mercado ilícito. Isso representa milhões de dólares que deixaram de ir para o tráfico (considerando que o mercado uruguaio de maconha legalizada é de 45 milhões de dólares por ano, o faturamento perdido seria de 13 milhões de dólares). Há, portanto, um impacto econômico real para os traficantes.

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A legalização permite diminuir o combate aos narcotraficantes? São coisas distintas. A política de drogas proibicionista, que exige fortes medidas de coerção, fracassou. Em nenhum país essa estratégia diminuiu significativamente os impactos na saúde pública provocados pelo consumo de drogas, muito menos conseguiu vencer de forma clara o narcotráfico. Pelo contrário, o fato de criar um mercado negro — que necessariamente aparece como efeito do proibicionismo — gera um negócio ilícito altamente lucrativo e que é porta de entrada para organizações criminosas. O proibicionismo conduz a uma espiral de violência. Em uma política integral de drogas como a que adotamos no Uruguai, por sua vez, não se descartam as ações de caráter repressivo contra as organizações de tráfico. As medidas regulatórias de produção, comercialização e consumo da droga não substituem as medidas de coerção, mas convivem com elas e devem integrar-se a elas de maneira mais equilibrada. Temos de continuar perseguindo as organizações criminosas, que são cada vez mais polivalentes e incorporam o tráfico, a lavagem de dinheiro, o negócio das armas e a corrupção.

A atenção volta-se para os grandes traficantes? A guerra às drogas, quando aplicada de forma radical, golpeia, fundamentalmente, os elos mais fracos do narcotráfico. É ali que vemos o impacto sobre, por exemplo, as mulheres pobres chefes de família, que se veem empurradas para o tráfico por penúria social ou coagidas pelo entorno e terminam atuando como mulas ou microtraficantes. É assim que vemos a população carcerária aumentar basicamente com pessoas pobres e com um viés racial específico. A legalização da maconha permite mudar a equação, pois faz com que as infrações menores de drogas sejam substituídas pelo aspecto regulatório. Com isso, de fato, as organizações meramente criminais entram no foco das políticas de segurança.

Se a ideia é essa, todas as drogas deveriam ser legalizadas, não? No momento, essa possibilidade não está sendo considerada pelo governo. É de esperar, porém, que, com a regulação da Cannabis, se inicie um debate nesses termos. Mas o mercado de drogas ilícitas é, em grande medida, um mer­cado de maconha. As outras drogas psicoativas têm um peso significativamente menor no consumo (6,5% dos uruguaios são consumidores habituais de maconha, enquanto 0,6% usa cocaína).

“Algo como 30% dos usuários de maconha não recorrem mais ao mercado ilícito. Isso representa milhões de dólares que deixaram de ir para o tráfico. Há impacto real para os traficantes”

Qual é o papel do Estado no mercado de maconha? No esquema uruguaio, o Estado ocupa um papel regulatório central: supervisiona a produção, as movimentações financeiras e a distribuição. Controla até a qualidade dos produtos. Ou seja, é uma regulação exigente, não se trata apenas de criar um mercado liberalizado e deixá-lo andar com as próprias pernas.

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Em 2017, das 2 toneladas de maconha apreendidas pela polícia, 17 quilos provinham da flor da planta, um produto de alta qualidade que pode ter saído dos clubes de Cannabis autorizados pelo governo. Como combater esse “mercado cinza” da droga? Considero esse conceito de “mercado cinza” pouco claro e, a rigor, equivocado. Existem atividades permitidas por lei, e ponto. As outras estão proibidas. Também é preciso dimensionar corretamente o fenômeno. Os dados da polícia mostraram que as apreensões de flores só representam 0,9% da maconha do mercado ilícito. Além disso, durante todo o ano de 2017 foram encontradas flores em apenas catorze operações em bocas de fumo. A situação merece nossa atenção, mas neste momento não a consideramos de alta gravidade. Em um processo de transição de um mercado ilícito para um mercado regulado, é de esperar que as coisas não entrem nos eixos da noite para o dia. Ainda estamos fazendo os ajustes para que não haja incentivos a quem queira atuar fora das regras do jogo. Uma maneira de fazer isso é consolidar e expandir o acesso à Cannabis legal, principalmente nas farmácias.

O interesse de turistas pela droga não incentiva o desvio de parte da produção legalizada para as bocas de fumo? O Uruguai tem uma posição muito clara a esse respeito. O acesso dos turistas não está permitido na lei e o governo não tem planos de mudar isso. A regulamentação da Cannabis no Uruguai pretende construir uma alternativa eficiente ao esgotado modelo de guerra às drogas no nosso país. Isso implica a necessidade de prosseguir com cuidado para não afetar os outros países, particularmente os nossos vizinhos que não escolheram seguir o mesmo caminho. Tendo em conta que uma porção importante dos mais de 4 milhões de turistas que o Uruguai recebe anualmente vem de países vizinhos, é essencial manter a nossa recusa em dar aos visitantes acesso ao mercado de maconha.

Uma lei como a do Uruguai poderia ser aplicada no Brasil? Seria muito atrevido da minha parte discutir a situação brasileira. Não tenho elementos suficientes para fazer isso. Por outro lado, em todo o processo uruguaio, desde a discussão da lei até a sua implementação, temos sido muito cuidadosos em ser livres para tomar decisões soberanas e defender essa soberania. Também tivemos a cautela de não entrar na discussão política de outros países. É evidente que a experiência uruguaia tem produzido informação e incentivado o debate nos países vizinhos, e há organizações e políticos que tomaram o caso uruguaio como um exemplo para defender suas posições, mas como governo nós não os incentivamos.

A produção científica uruguaia beneficiou-se com a regulamentação da maconha? Há novidades interessantes. Foram criados cursos de mestrado que não existiam. Agora há unidades acadêmicas dedicadas à política de drogas. Antes, havia somente dois pontos de vista sobre a questão: o jurídico-legal e o médico. Essas duas visões ainda existem, mas hoje também há pesquisas nas áreas de bioquímica, antropologia e sociologia. Com isso, outras profissões que não colocavam o tema das drogas na agenda da pesquisa agora o incorporaram. Na área da saúde, surgiram pesquisas associadas ao uso medicinal da Cannabis. A legalização ajudou nisso, porque antes os pesquisadores não podiam manter um cultivo ou não podiam comprar Cannabis para desenvolver seus estudos. Agora podem.

Com as eleições presidenciais de 2019 no Uruguai, há o risco de volta atrás na política de drogas? Não existem atores relevantes na política uruguaia propondo isso, salvo algumas exceções. Há diferenças de opinião sobre como a regulação deve acontecer ou qual alcance deve ter. As formas de comercialização são a questão mais debatida. Mas não vejo posições contrárias consistentes e que encontrem eco na população. A regulamentação da maconha chegou para ficar.

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Publicado em VEJA de 28 de fevereiro de 2018, edição nº 2571

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