À espera de um milagre
Com aumento de despesas e falta de reformas, governo enfrenta dificuldade para cumprir “regra de ouro” das finanças — e corre risco de violar a Constituição
Ao contrário da maior parte das famílias e empresas, que caiu na real e fez ajustes duros para enfrentar a crise, o governo brasileiro continua à espera de um milagre. As finanças públicas acumulam déficits bilionários, e a dívida não para de crescer. Sobra pouco dinheiro para investimentos em obras e em áreas essenciais como educação e saúde. Sem um corte profundo, haverá o risco de todo o país passar por uma situação similar à do Rio de Janeiro e outros estados quebrados, com a suspensão do pagamento de aposentadorias e a interrupção temporária de serviços. Um sintoma da gravidade do quadro é a probabilidade de, a partir de 2019, o governo ficar impossibilitado de cumprir a chamada “regra de ouro” das finanças públicas — o que seria uma violação da Constituição.
A regra de ouro determina que o governo pague as suas despesas correntes (salários, aposentadorias, conta de luz, viagens, cafezinhos) apenas com o dinheiro advindo dos impostos. Os recursos obtidos com a venda de títulos públicos (ou seja, por meio do aumento da dívida pública) podem ser empregados só para dois fins: fazer investimentos e rolar os vencimentos da própria dívida. Em outras palavras, o governo não pode se endividar para pagar a aposentados ou a conta de água do Jaburu. A regra foi inscrita no Artigo 167 da Constituição de 1988, com o propósito saudável de restringir a propensão dos governantes a contrair novas dívidas e deixar a conta para os sucessores.
Com alguma dificuldade, diante do desequilíbrio atávico das finanças públicas, a regra vinha sendo respeitada nos últimos anos — em boa parte, porque a carga de tributos estava avançando. Mesmo nos anos de Dilma Rousseff, o dispositivo foi cumprido, ainda que, em 2014, de maneira infame: graças às famosas pedaladas fiscais, que foram basicamente o uso dos bancos públicos para o pagamento de despesas correntes. A Lei de Responsabilidade Fiscal, de 2000, proíbe explicitamente que as instituições financeiras estatais financiem o governo, porque, no passado, esse era um estratagema frequente dos governantes para driblar as restrições orçamentárias — entre elas, a própria regra de ouro. Como se sabe, as pedaladas acabaram servindo de base legal para o impeachment.
Agora, o Planalto se vê diante de uma nova encruzilhada. De um lado está a carga tributária, que bateu no teto e cuja elevação sabotaria a retomada na economia. Do outro estão as despesas monumentais, a despeito de alguns ajustes feitos recentemente. O ministro da Fazenda, Henrique Meirelles, e sua equipe têm se empenhado em diminuir os gastos chamados não obrigatórios, como o recapeamento de estradas ou a manutenção de prédios. Mas, mesmo que todos esses custos pudessem ser eliminados, o governo enfrentaria dificuldade para respeitar a regra de ouro. Isso porque os gastos obrigatórios, sobretudo com aposentadorias, avançam de maneira implacável.
Assim, todas as preces do ministro (e ele, como se vê na foto mais acima, anda rezando bastante ultimamente) são para que a reforma previdenciária seja aprovada com urgência. O problema, aqui, é que o governo não dispõe dos votos para aprovar o projeto. Tudo fica mais turvo por se tratar de ano eleitoral, considerando que tanto Meirelles quanto o presidente da Câmara, Rodrigo Maia, estão se apresentando como pré-candidatos. Mas Temer ainda não jogou a toalha. Em seu esforço para galgar o apoio da população à reforma da Previdência, aceitou o convite de Silvio Santos para ir ao programa do apresentador e explicar a proposta do governo. A gravação será na quinta-feira 18. Temer irá também ao Programa do Ratinho.
Se tivesse sido aprovada uma reforma profunda ainda no ano passado, o governo talvez contasse no momento com alguma folga para respirar. Agora, mesmo se a proposta atual, já bastante diluída, for aprovada, não será fácil respeitar a regra de ouro. Daí a preocupação de Meirelles e seus assessores. Para este ano, o governo conta com receitas dos recursos devolvidos pelo BNDES. As projeções indicam, porém, ser impossível seguir a lei em 2019. Estima-se um rombo de 100 bilhões de reais, ou até mais. A rigor, seria um problema para o próximo governo, mas a Lei Orçamentária de 2019 será redigida até agosto, e o documento, para ser aprovado até o fim deste ano, precisa mostrar um balanço equilibrado e dentro da legalidade. Diante do empecilho, a equipe econômica lançou-se à articulação da aprovação de um texto para flexibilizar a regra de ouro — espécie de “mágica” para dar uma pedalada nas contas públicas. A reação negativa, sobretudo depois de um impeachment à base de pedaladas, foi imediata. Temer mandou engavetar, por ora, a ideia.
“Todo mundo fez vista grossa para essa questão e, agora, ela ficou grande demais. A situação exige medidas ousadas”, afirma o economista Raul Velloso, especialista em contas públicas. Na sua avaliação, o melhor caminho seria atacar o rombo na previdência dos funcionários públicos (77 bilhões de reais em 2016). Para Velloso, poderia ser feita uma contabilidade à parte, retirando esse item do orçamento federal. Com o objetivo de equilibrar esse buraco, seria criado um fundo específico, como ocorre nos fundos de pensão das estatais. Evidentemente, seria necessário um aumento considerável na contribuição dos servidores, algo improbabilíssimo. Ou seja: é melhor mesmo rezar pela aprovação da reforma da Previdência.
Publicado em VEJA de 17 de janeiro de 2018, edição nº 2565