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A dor que não se mede

Boletim de ocorrência incluirá o gênero e a identidade sexual das vítimas, na tentativa de tornar mais precisos dados sobre crimes contra a população LGBT

Por Mariana Barros Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO Atualizado em 5 ago 2017, 06h00 - Publicado em 5 ago 2017, 06h00
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  • Estatísticas, ou a falta delas, são uma questão histórica do Brasil. Até hoje não se sabe, por exemplo, qual o déficit habitacional no país (o dado disponível — 5,4 milhões de moradias — é apenas uma estimativa do Ipea). Quando se fala em violência contra lésbicas, gays, bissexuais e transe­xuais (LGBTs), é ainda mais difícil dimensionar o problema, a começar pelo fato de que o registro policial omite a informação sobre o gênero e a identidade sexual da vítima, fatores que, em alguns casos, vêm a ser precisamente o motivo do crime.

    Quando travestis assassinados por serem travestis são registrados na ficha policial com seu nome de batismo, ou quando casais gays agredidos por serem gays têm essa informação omitida no boletim de ocorrência, passa por crime comum o que na realidade é crime de ódio, assim chamado aquele que envolve preconceito contra raça, religião, orientação sexual, deficiência, etnia ou nacionalidade. Para tentar resolver esse problema, a Secretaria de Direitos Humanos (SDH) do Ministério da Justiça, juntamente com outros órgãos, dedica-se desde o ano passado à criação de um modelo de boletim de ocorrência que evidencie se a vítima é transgênero, travesti, gay ou lésbica, por exemplo.

    O novo BO está em desenvolvimento, e a SDH ainda trabalha na montagem de um curso de treinamento que capacite os funcionários a lidar com o documento sem correr o risco de constranger as vítimas. “De modo geral, as pessoas têm dificuldade de lidar com questões de gênero. Ficam inseguras sobre o que podem ou não podem dizer”, diz Marina Reidel, coordenadora-geral da promoção dos direitos LGBT da SDH. “A dificuldade começa pelo uso da terminologia correta. Às vezes o oficial nem sabe dizer o que é transexual ou gay, quanto mais como se dirigir a essa pessoa”, diz Marina, ela mesma transexual.

    A ausência de registros oficiais que evidenciem a associação entre delito e preconceito faz com que, no Brasil, apenas casos de grande repercussão sejam tratados como crime de ódio. A morte do jovem Itaberli Lozano, de 17 anos, é um desses episódios. Morador de Cravinhos, no interior de São Paulo, ele foi morto a facadas pela própria mãe, Tatiana, que não aceitava sua homossexualidade. Depois do assassinato, ela e o padrasto atearam fogo ao corpo do rapaz. Mas, se o caso de Itaberli causou enorme comoção no país, dezenas de outros crimes motivados pelo preconceito passam longe dos olhos do público e não chegam a entrar para as estatísticas oficiais.

    Atualmente, a secretaria de Segurança Pública dos estados é a principal fonte de registros de violência contra LGBTs no Brasil. Entre os 26 estados brasileiros e o Distrito Federal, porém, apenas Rio de Janeiro, Minas Gerais, Santa Catarina e Pernambuco identificam nos BOs se a vítima da violência é LGBT. E, mesmo assim, os critérios usados em cada estado não obedecem a um padrão. Em Minas, no Rio e em Pernambuco, por exemplo, as secretarias detalham a preferência sexual e de gênero das vítimas em todos os boletins de ocorrência, independentemente do tipo de crime em que elas tenham se envolvido. Já em Santa Catarina, essa especificação só se dá quando a autoridade policial suspeita de crime de ódio.

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    Outra fonte incompleta de dados sobre a violência praticada contra LGBTs no Brasil é o Disque-Denúncia da SDH. Nesse caso, não há investigação para apurar se a denúncia registrada tem fundamento. Segundo o serviço, esse tipo de homicídio tem aumentado: de 35, em 2014, para 85, no ano passado. A terceira fonte de registros do gênero disponível no Brasil é o levantamento feito pelo Grupo Gay da Bahia, que se baseia em notícias publicadas na imprensa e em grupos de Whats­App. De acordo com a ONG baiana, os crimes motivados por preconceito bateram recorde em 2016, com uma morte LGBT a cada 25 horas. No total, foram 343, número que supera os 318 registrados no ano anterior. O grupo divulga anualmente um estudo internacional, que, em 2016, indicou o Brasil como o país que mais mata LGBTs no mundo, com base em dados enviados por ONGs nacionais e de outros países.

    Ocorre que a metodologia da pesquisa abre brechas para distorções, a começar pelo fato de que cada país reúne os registros a seu modo, sem um método-­padrão. Além disso, países onde há notória perseguição a homossexuais, como o Irã, não enviam seus dados e, portanto, não entram no cômputo geral. Outros, onde a censura impera, muitas vezes divulgam números distantes da realidade — a Rússia, por exemplo, informou ter tido apenas dois crimes de caráter homofóbico no ano passado, o que é sabidamente uma inverdade. A afirmação de que o Brasil é o país que mais mata LGBTs no mundo, portanto, carece de lastro, conforme reconhece a Secretaria de Direitos Humanos. Mas isso não significa, infelizmente, que a violência homofóbica seja um problema menor no Brasil. Também não significa que a brutalidade que atinge essa população deva ser encarada como uma questão lateral. Meios que dimensionem com precisão o tema são um pequeno mas importante passo para começar a resolvê-lo.


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    O exemplo de Matthew Shepard

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    O caso que virou lei – A morte de Matthew: contra o crime de ódio (Evan Agostini/Getty Images)

    Judy Shepard é um dos principais nomes por trás da Lei de Prevenção de Crimes de Ódio, aprovada no primeiro ano do governo Barack Obama, em 2009, que prevê penas específicas para crimes motivados por preconceito. Em 1998, seu filho Matthew foi torturado e brutalmente assassinado. Ele tinha 21 anos quando, em uma noite de outubro, saiu para encontrar amigos em um bar em Laramie, pequena cidade em Wyoming, onde vivia. Lá, conheceu dois jovens, Russell Henderson, 21, e Aaron McKinney, 22, que fingiram ser gays e o atraíram para seu carro a fim de roubá-lo. Levaram 20 dólares do rapaz e o agrediram com uma pistola. Depois, numa estrada deserta, amarraram-no a uma cerca de madeira, deram-lhe coronhadas que lhe causaram quatro fraturas no crânio e o abandonaram ali. Matthew morreu depois de, desacordado por dezoito horas, ficar exposto a temperaturas próximas de zero. Desde a perda do filho, Judy tornou-se ativista da causa LGBT, que ajudou a divulgar por meio de seu livro The Meaning of Matthew (O Significado de Matthew, de 2009, não lançado no Brasil). Os assassinos de Matthew foram condenados por homicídio sem a agravante da motivação homofóbica. Hoje, Judy trabalha ajudando a provar nos tribunais americanos as situações em que a identidade de gênero foi a razão de um crime. Outro problema é a subnotificação, também existente nos Estados Unidos. Lá, os estados ainda não são obrigados a reportar crimes de ódio ao Departamento de Justiça, responsável pela contabilização nacional de registros.

    Em 2013, o jornalista Stephen Jimenez tentou desmontar a história da morte de Matthew ao lançar o livro The Book of Matt: Hidden Truths about the Murder of Matthew Shepard (O Livro de Matt: Verdades Ocultas sobre o Assassinato de Matthew Shepard, não lançado no Brasil). Após treze anos de pesquisa, Jimenez apresentou sua versão dos fatos: a motivação do assassinato não teria sido o ódio a gays, e sim o consumo de metanfetamina, que teria deixado os criminosos fora de si. Ele diz ainda que o próprio Matthew comercializava a droga, o que explicaria por que ele entrou no carro de desconhecidos. O livro não desfez nos americanos o choque provocado pela morte do rapaz. Mas evidenciou a dificuldade de provar a motivação de um crime — seja ela o racismo ou a homofobia.

    Publicado em VEJA de 9 de agosto de 2017, edição nº 2542

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