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A ameaça de golpe

Cultiva-se silêncio sobre a quantidade de brasileiros simpáticos a uma saída autoritária. Mas falar dessa assombração é o melhor antídoto para espantá-la

Por J.R. Guzzo Atualizado em 4 Maio 2018, 06h00 - Publicado em 4 Maio 2018, 06h00
(Arquivo/Agência O Globo)
CAMINHO ERRADO –  Cenas da ditadura militar: eles vieram para pôr ordem no país, e deu no que deu: censura, tortura, assassinatos (Silvaldo Leung/.)

Responda com franqueza, por favor: se amanhã ou depois o ministro Gilmar Mendes, por exemplo, fosse despejado do seu gabinete no Supremo Tribunal Federal por um terceiro-sargento do Exército, enfiado num camburão verde-oliva e entregue na penitenciária da Papuda por ordem do alto-comando das Forças Armadas, quantas lágrimas você derramaria por ele? Esqueça as lágrimas. Você, ao menos, diria alguma coisa, qualquer coisa, contra a prisão do ministro? Ou, ao contrário, acharia muito benfeito o que lhe aconteceu? Só mais uma coisa: entre Gilmar Mendes (ou Toffoli, ou Lewan­dowski, ou Marco Aurélio etc.) e o general que mandou todos para o xadrez, depois de evacuar o prédio e passar a chave no STF, você ficaria ao lado de quem? Para completar o exercício, basta somar ao Supremo o Congresso Nacional inteirinho, com seus 513 deputados e 81 senadores, os 27 governadores e mais os milhares de reizinhos, sem concurso público e sem competência, nomeados para mandar na máquina pública — onde se dedicam a roubar o Erário, para si e para os chefes, e a infernizar a sua vida. Se as Forças Armadas assumissem o governo, fechassem o Congresso e demitissem essa gente toda, de preferência mandando a maioria para o xadrez, tente calcular quantos brasileiros ficariam a favor dela e quantos ficariam a favor dos militares. Chegue então às suas conclusões.

Intervenção militar, golpe militar, regime militar, ditadura militar — francamente, quem gosta de falar abertamente dessas coisas? É preciso ficar contra, é claro — e ficar contra agora pode vir a ser um belo problema depois, se a casa acabar caindo um dia. É verdade que o cidadão que tem algum tipo de interesse em política já não sente maiores incômodos em tocar no assunto, principalmente se não tem mais paciência com o lixo que as mais altas autoridades da República produzem sem parar e depositam todos os dias à sua porta. Não chega a ser uma surpresa fenomenal, assim, que um número cada vez maior de cidadãos esteja começando a achar que seria uma boa ideia se os militares assumissem de novo o governo do Brasil para fazer uma limpeza em regra na estrebaria que é hoje a vida pública do país. Mas, entre os políticos, nos meios de comunicação, nas classes intelectuais e em outros lugares onde as pessoas supostamente “entendem” dessas coisas, é um assunto que se trata como um porco-espinho — com extremo cuidado. É melhor não ficar comentando em voz alta, dizem. Não é o momento, não é o caso, não “se trabalha com esse cenário”. É como falar mal do defunto no velório, na frente do caixão. Tudo bem. Mas não é assobiando que se espanta a assombração. Nem fazendo cara de preocupado em programas de televisão ou escrevendo artigos para solicitar aos militares, por favor, que respeitem rigorosamente a Constituição, as instituições e os monstros que ambas criaram e hoje estão soltos por aí. É preciso muito mais do que isso.

“Intervenção militar, regime militar, ditadura militar — francamente, quem gosta de falar abertamente dessas coisas? É preciso ficar contra, é claro”

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Está complicado, em primeiro lugar, porque muita gente nem acha que essa assombração é mesmo uma assombração — ao contrário, acha que é a equipe de resgate chegando para salvar os feridos. Quantos brasileiros, hoje, seriam a favor de uma intervenção militar? É pouco provável que os institutos de pesquisa façam a pergunta, porque têm medo de ouvir a resposta — mas eis aí, justamente, um indicador muito interessante. Dá para deduzir, por ele, que uma grande parte da população receberia com uma salva de palmas as imagens de tanques rolando nas ruas e políticos, ministros supremos e empreiteiros de obras atropelando-­se uns aos outros para fugir pela porta dos fundos. Em segundo lugar, está complicado porque democracias só ficam de pé se são vistas como um bem importante e compreensível pela maioria da população — e se há um número suficiente de cidadãos dispostos, de verdade, a brigar por sua manutenção. Muito bem: quantos brasileiros acham que estão sendo realmente beneficiados, em sua vida cotidiana, por essa democracia que veem desfilar à sua frente no noticiário de cada dia? E quantos topariam sair à rua para defender, por exemplo, o mandato dos senadores Romero Jucá, Renan Calheiros ou Jader Barbalho?

O fato, que não vai embora por mais que se queira fazer de conta que “as instituições estão funcionando”, é que praticamente ninguém, no mundo político, merece o mínimo respeito do cidadão hoje em dia. Honestamente: alguém seria capaz de dizer o contrário? Se os encarregados de manter o regime democrático em funcionamento se desmoralizam todos os dias, e desprezam abertamente as regras da democracia com a sua conduta criminosa, fica difícil supor que esteja tudo bem. Nossas autoridades “constituídas” acham que está. Como a Constituição diz que é proibido fechar o Supremo, o Congresso etc., imaginam que podem continuar fazendo qualquer barbaridade que lhes passar pela cabeça. Imaginam que os militares, informados de que existe uma “cláusula pétrea” mandando o Brasil ser uma democracia, se veriam obrigados, por isso, a continuar assistindo em silêncio à anarquia promovida diante de seus olhos por magistrados do STF, ministros de Estado, líderes parlamentares e demais peixes graúdos que têm a obrigação de sustentar o cumprimento das leis — mas vivem em pleno colapso moral e não conseguem mais segurar no chão nem uma barraca de praia.

É cansativo ouvir, mais uma vez, que a democracia é uma coisa e as pessoas que ocupam os cargos de governo são outra. Não se devem confundir as duas, reza a doutrina, pois nesse caso um regime democrático só poderia existir numa sociedade de homens justos, racionais e bondosos; se as pessoas que mandam estão mandando mal, a solução é substituí-­las por outras por meio de eleições, processos na Justiça e demais mecanismos previstos na lei. Mas o Brasil está fazendo mais ou menos isso desde 1985, e até agora não deu certo. Alguém tem alguma previsão sobre quanto tempo ainda será preciso esperar? A democracia brasileira faliu; é possível que nunca tenha tido chances reais de existir, por insuficiência de gente realmente disposta a praticá-la, mas o fato é que estão tentando fazer o motor pegar há mais de trinta anos, e ele não pega. Talvez ainda desse para ir tocando adiante por mais tempo, com um remendo aqui e outro ali. Acontece que neste momento, justamente, há muito menos esforço para escorar o que está bambo do que para tacar fogo na casa inteira.

A questão central, curiosamente, é a manutenção da lei. Nove em dez golpes, ou nove e meio, são dados por quem tem a força armada e quer mandar a lei para o espaço. Aqui parece estar se montando o contrário. Os militares dizem, como deu a entender semanas atrás o general Eduardo Villas Bôas, comandante do Exército, que exigem o cumprimento da Constituição e das leis penais para continuar nos quartéis. Quem está querendo abolir a aplicação da lei são os que não têm as armas mas chegaram à conclusão de que não conseguem sobreviver se forem mantidas as regras atuais da democracia brasileira. Está mais do que claro de quem se trata. Trata-se, em primeiro lugar, do ex-presidente Lula, do PT e dos seus partidos auxiliares. Em segundo lugar, vem o populoso cardume de políticos, de qualquer partido, que estão fugindo da Justiça Penal por prática de corrupção e outros crimes — são centenas de indivíduos, literalmente. Em terceiro lugar, fechando a trindade, estão as empreiteiras de obras públicas, fornecedores do governo e o restante das gangues que vivem de roubar o Tesouro Nacional. Todos esses precisam desesperadamente de uma virada de mesa que solte Lula da prisão, salve da linha de tiro os ladrões ameaçados pela lei e devolva condições normais de operação para o negócio da ladroagem de dinheiro público em geral.

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O último esforço em seu favor foi essa grosseira ofensiva dos ministros Toffoli, Lewandowski e Gilmar para tirar Lula da prisão, suprimir provas dos processos criminais que ele tem pela frente, anular sua condenação, impedir o trabalho do juiz Sergio Moro — em suma, fraudar a Justiça Penal brasileira numa trapaça de escala realmente monumental, com o vago objetivo de “zerar tudo”. É o sonho de Lula e seus advogados milionários de Brasília, do Complexo PT-PSOL-­PCdoB etc., e de dez entre dez ladrões sob ameaça de punição: declarar a Operação Lava-Jato ilegal, sumir com tudo o que ela já fez, está fazendo ou vai fazer e demitir o juiz Moro a bem do serviço público, junto com todos os magistrados que combatem a corrupção no Brasil. Eles não dizem isso, é claro: sua conversa é que estão aplicando o embargo dos embargos de agravo teratológico com efeito suspensório, diante da combinação hermenêutica de mutatis mutandis interlocutórios com ora pro nobis infringentes. Não perca o seu tempo com o vodu jurídico do STF sobre “direito de defesa” que a mídia repassa a você com casca e tudo: é pura tapeação para ver se soltam Lula da cadeia e ajudam a ladroagem — primeiro para que ela escape da penitenciária e, em seguida, para permitir que continue roubando em paz.

É disso que se trata. Há, simplesmente, uma guerra contra o estado de direito neste país, comandada pelas forças que não podem conviver com ele. Lula e o seu sistema de apoio não querem a democracia. Recusam-se, abertamente, a cumprir a lei e a aceitar decisões legítimas da Justiça; sabem que não têm futuro num regime democrático, com poderes independentes, Lava-Jato, imprensa livre e o restante do pacote. Estar no governo, para essa gente, não é a mesma coisa que seria para você. Eles precisam estar no governo. Não só para ter empregos, fazer negócios e ganhar dinheiro da Odebrecht, mas porque enfiar-se no poder é a diferença entre estar dentro ou fora da cadeia. É por isso que os senadores petistas Lindbergh Farias e Gleisi Hoffmann, entre outros, se agitam tanto. Se as leis continuarem a ser normalmente aplicadas, eles poderão ter diante de si, em breve, ações penais duríssimas. É por isso que o deputado Wadih Damous, também do PT, disse outro dia que “é preciso fechar o Supremo Tribunal Federal” — depois de reconhecer que o ministro Gilmar é um “aliado” do partido. (O deputado não esclareceu o que pretende fazer com ele, mais os Toffolis, Lewandowskis e similares, depois de fechar o STF.)

O mundo político e a elite, caídos de quatro no chão, olham em silêncio para tudo isso, aterrorizados por Lula e assustados com a voz da tropa. Quando quiserem reclamar, poderão se ver reclamando tarde demais e em muito pouca companhia.

Publicado em VEJA de 9 de maio de 2018, edição nº 2581

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