A ameaça crescente da obesidade no país
O número de pessoas acima do peso no Brasil saltou de 24% da população nos anos 1970 para mais da metade dos brasileiros hoje em dia
Os dados são precisos, recentes e, sobretudo, alarmantes. De acordo com o Ministério da Saúde, dos 207,6 milhões de brasileiros, 53,8% estão acima do peso. Na década de 70, o índice no país era bem menor: 24%. A marca ultrapassou 50% da população em 2016 — o que equivale a dizer que o salto não ocorreu de uma hora para outra; desenhou-se aos poucos, é verdade, mas não sem deixar pistas (leia a entrevista com o endocrinologista Walmir Coutinho, neste especial). A crônica da obesidade no Brasil foi, sim, anunciada.
Para além dos fatores genéticos, as causas do sobrepeso se multiplicam — e as mudanças nos hábitos alimentares verificadas mundo afora nas últimas décadas têm enorme responsabilidade no avanço da obesidade. Houve, por exemplo, um aumento significativo no consumo de alimentos semiprontos e congelados. A popularização dos micro-ondas e dos freezers contribuiu bastante para isso. Embora prático, esse cardápio é quase sempre pouco saudável, como a maioria das atrações das redes de fast-food. E o pior: muitas vezes, engorda.
Não bastasse o alastramento do sobrepeso entre os adultos — que no Brasil atinge 57,7% dos homens e 50,5% das mulheres —, a obesidade se espalha de forma avassaladora na população infantil. No país, 12,7% dos meninos e 9,4% das meninas estão obesos. O índice nos Estados Unidos, para ficar em um exemplo, é maior; no entanto, observando-se a curva dos últimos vinte anos, nota-se que o crescimento de casos de crianças acima do peso na população americana foi de 66%, enquanto no Brasil esse índice subiu 239%. A Organização Mundial da Saúde projeta que até 2022 o número de crianças obesas no planeta deva ultrapassar o das que se situarem abaixo do peso. Para tentar ao menos abrandar essa perspectiva, a entidade defende a elevação de impostos sobre produtos açucarados e a restrição a alimentos industrializados nas escolas. A propósito, os especialistas chamam a atenção para o fato de que frequentemente em supermercados os alimentos naturais ocupam menos espaço, e com menor destaque, que os produtos industrializados. Outra medida para frear o avanço da obesidade infantil seria uma estudada regulação da publicidade destinada ao público infantojuvenil.
Tamanha preocupação com a infância vai, na realidade, além da própria infância. A probabilidade de uma criança gorda tornar-se um adulto acima do peso é enorme. Isso porque o número de células adiposas, que retêm gordura, conhecidas como adipócitos, é geralmente definido até os 20 anos. Depois dessa idade, nada, absolutamente nada é capaz de diminuir a quantidade de adipócitos — nem a mais radical das dietas. Quando uma pessoa emagrece, os adipócitos apenas perdem volume, entretanto continuam lá.
Adultos com obesidade grave desde a infância vivem até dez anos menos em relação aos que mantiveram a linha. A condição aumenta ainda em três vezes o risco de diabetes do tipo 2. Num mundo onde não existissem pessoas acima do peso, o índice de infartos e de hipertensão seria 30% menor e o de diabetes cairia 70%. Em outras palavras, a obesidade é uma doença — aliás, só reconhecida como tal em 2017 — que provoca outros males. Calcula-se que 30% dos casos de sobrepeso ocorram por causa dos genes, isto é, em razão de uma disfunção biológica. Seja qual for a origem do problema, o emagrecimento só deve ser orientado e acompanhado por profissionais de medicina, e não por consultores, blogueiros e outros curiosos.
Uma vez que a obesidade já se instalou, o desafio é como combatê-la de forma eficaz. Atualmente, o Brasil tem sete compostos aprovados pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) para o tratamento da doença. É preciso ressaltar, contudo, que os medicamentos reduzem, no máximo, apenas 10% do peso corporal. Até pouco tempo atrás, o orlistate, o princípio ativo do Xenical, era uma das escassas opções presentes no arsenal dos endocrinologistas. O produto decolou, porém seu uso é limitado, principalmente em razão de seus efeitos colaterais. Uma das alternativas mais eficazes disponíveis hoje no mercado para o tratamento da obesidade é a liraglutida, substância do Victoza. Depois de dezoito anos sem aprovar nenhum remédio contra a doença no país, a Anvisa anunciou sua liberação em 2016. Mas, embora proporcione, de fato, bons resultados, o medicamento é considerado pouco acessível — tratar-se com ele significa desembolsar cerca de 800 reais todos os meses. No início dos anos 2000, o crescimento registrado por aqui no consumo dos remédios anfetamínicos foi de 500% em relação aos números da década anterior. As mulheres brasileiras aparecem no topo de qualquer lista entre as maiores consumidoras dessa categoria de medicamento em todo o planeta.
Outra opção de tratamento da obesidade é a cirurgia bariátrica, capaz de cortar até 50% do peso logo nos primeiros meses — na média, obtém-se redução de 30%. Trata-se, no entanto, de um método altamente invasivo. Ainda assim, tem sido adotado como derradeira alternativa por milhares de pessoas no Brasil. Nos últimos cinco anos, o número dessas cirurgias explodiu no país. Subiu 39% — de 72 000, em 2012, para 100 000, em 2016 —, segundo a Sociedade Brasileira de Cirurgia Bariátrica e Metabólica.
O aumento da quantidade de obesos vem exigindo a adoção de várias medidas que visam a oferecer a eles um maior grau de bem-estar. No Estado de São Paulo, por exemplo, uma lei em vigor desde 2006 obriga cinemas, teatros, casas de shows e empresas de transporte público a assegurar, no mínimo, duas cadeiras especiais, mais espaçosas, para ser usadas por pessoas acima do peso. Com isso, vagões e estações de metrô ganharam assentos de 88 centímetros de largura e com capacidade para suportar até 300 quilos.
Dos mais de 100 milhões de brasileiros acima do peso, 40% não conseguem emagrecer mudando apenas o cardápio ou o estilo de vida — só obtêm resultados efetivos com a ajuda de outras estratégias. Não se trata, como se costuma supor, da mera ausência de força de vontade, e sim das próprias especificidades da obesidade. A doença, em sua indiscutível complexidade, envolve fatores metabólicos, desequilíbrios químicos e genéticos. Cerca de cinquenta substâncias, entre hormônios e neurotransmissores, regulam o apetite, a saciedade e o paladar para um ou outro alimento.
Pesquisas que acompanharam populações por décadas foram capazes de entender melhor o impacto dos alimentos, apontando os verdadeiros “vilões” — o açúcar, os ultraprocessados etc. — e absolvendo aqueles que tradicionalmente eram demonizados. O caso mais exemplar nesse sentido foi o ovo. Na gangorra do julgamento científico, ele acabou inocentado. A liberação se estendeu a outros alimentos ricos em colesterol, como o camarão, a coxa de frango (com a pele, que fique bem claro), o coração de galinha, a lula e o bacalhau.
Os hábitos à mesa, entretanto, continuam sofrendo reviravoltas constantes. Algumas mudanças surgem por modismos, como o do suco verde (frutas com couve), considerado, sem comprovação, um meio para “limpar” o organismo. A expectativa, contudo, é que haja um retorno à alimentação do passado, com a revalorização da chamada “comida de verdade” — o avesso do fast-food. Dizem os estudiosos Jean-Louis Flandrin e Massimo Montanari em seu monumental História da Alimentação: “As transformações são inevitáveis e seria inútil lamentar o passado — um passado, não esqueçamos, no qual a fome foi, muitas vezes, a protagonista. Saber administrar a relação do presente com o passado, a tradição e a mudança, é uma tarefa que cabe tanto à nossa geração quanto coube às precedentes. Isso permite enriquecer nosso patrimônio gastronômico”.
Publicado em VEJA de 25 de julho de 2018, edição nº 2592