O silêncio sepulcral é quebrado pelo canto gregoriano, entoado solenemente pelos mais de 200 fiéis que acompanham a celebração. Mulheres de saia abaixo dos joelhos cobrem a cabeça com um véu de renda, branco para as solteiras, preto para as casadas. Todos os rapazes usam calça comprida e camisa abotoada. À esquerda, um dos dez vitrais coloridos resume o ambiente: nele se veem uma imagem de São Paulo e a frase “Guardai-vos das novidades”. Assim é a missa de domingo na Capela São Pio X, em plena Vila Mariana, um bairro da Zona Sul de São Paulo. Depois de ficar décadas praticamente relegada à memória dos mais velhos, a missa tridentina (referência ao Concílio de Trento, em meados dos anos 1500, quando o ritual foi consagrado), aquela que é toda celebrada em latim, com o padre de costas para a congregação, está passando por uma ressurreição, atendendo à recente multiplicação do rebanho conservador.
Esse movimento, como outros que reforçam as diversas vertentes do conservadorismo no mundo, tem raízes no burburinho incessante de informações que cria e derruba certezas absolutas a cada segundo e exacerba os ânimos e as inquietações das pessoas. “Quando o futuro parece muito incerto, a volta ao passado tem o apelo de um porto seguro”, diz o cientista das religiões Vinícius Mérida, da PUC-MG. Em 1990, havia no Brasil inteiro apenas treze paróquias que rezavam missas tridentinas. Hoje, são 133 listadas em um site especializado, fora as muitas que oferecem os dois ritos, o antigo e o atual, dependendo do horário. Recentemente, igrejas no Espírito Santo e em Alagoas começaram a oferecer a celebração em latim como opção, em um repertório misto que se repete em templos instalados em roteiros turísticos como a Igreja São José e o Outeiro da Glória, no Rio de Janeiro, e o Mosteiro de São Bento, em São Paulo — famoso justamente pelo coral gregoriano.
O credo que move os autoproclamados guardiões da doutrina — entre eles, surpreendentemente, uma vasta legião de jovens — é a urgência de evitar o que entendem como o iminente colapso da Igreja Católica. “Desde o Concílio Vaticano II a instituição está envolta na fumaça de Satanás”, acredita o maranhense Thadeu Nunes, de 20 anos, frequentador da missa tridentina de domingo na capela paulistana. O Vaticano II, iniciado pelo papa João XXIII e encerrado em 1969, por Paulo VI, aprovou diretrizes destinadas a modernizar a Igreja, como a chamada “missa nova”.
Desde o Concílio de Trento até exatos cinquenta anos atrás, a missa seguiu uma fórmula absolutamente rígida, sem nenhuma abertura para padres cantores e instrumentos musicais como guitarra e bateria no serviço religioso. O Concílio Vaticano II foi um divisor de águas no catolicismo e criou um racha entre religiosos favoráveis às mudanças (ou conformados com elas) e aqueles que as rechaçaram completamente. Além de mudar os ritos, o concílio flexibilizou o conceito de extra ecclesiam nulla salus — “fora da Igreja (católica, claro) não há salvação” —, aproximando o catolicismo de outras religiões e ganhando dos tradicionalistas acusações de “herético”, “judaizante”, “maçônico” e “comunista”. Os líderes do rebanho que viu na reforma uma afronta sem perdão à fé católica foram o arcebispo francês Marcel Lefebvre e o brasileiro Antônio de Castro Mayer, responsável pela diocese de Campos dos Goytacazes, no Rio. Os dois continuaram a rezar missas tridentinas, indiferentes à exigência de autorização especial de Roma para fazê-lo.
Mesmo excomungados, eles nunca deixaram de ter seguidores, que agora se multiplicam. Em São Paulo, o empresário Paulo Victor Santana, de 22 anos, milita na cartilha tradicionalista. Há duas semanas, compareceu a um encontro de jovens que comungam desse mesmo catecismo na Praça da Sé, no centro de São Paulo, trajando uma camiseta com a frase “Lefebvre tem razão”. Diz ele: “Quando conheci a tradição, tive receio de seguir as ideias de um bispo que chegou a ser excomungado. Hoje, com o paganismo à solta na Igreja e Pachamama no Vaticano, entendo que ele estava certo”. A imagem de Pachamama, deusa amazônica exposta em uma igreja na Itália, foi roubada e atirada no Rio Tibre por grupos ultraconservadores.
Em 2007, o papa Bento XVI, em um afago à linha tradicionalista, revogou a burocracia para a celebração do rito antigo, e ele começou a ser discretamente oferecido em paróquias de regiões mais conservadoras. Aí veio o papa Francisco, falando em dar comunhão a divorciados, respeitar os homossexuais e até — coisa que nunca se viu — permitir padres casados na Amazônia, e as hostes do tradicionalismo se inflaram com a adesão de católicos indignados com os ventos modernistas. “A Igreja não deve se adequar ao tempo. Sua missão é salvar almas. Cada vez que ela se abre a uma novidade, pessoas são condenadas ao inferno”, acredita piamente o estudante de jornalismo Darwin Schmidt, de 21 anos, que rejeita o nome de batismo, do pai da teoria da evolução, e prefere ser chamado de Domenico, em homenagem a São Domingos Sávio.
Schmidt estudou em uma conceituada escola alemã em São Paulo. Na adolescência, dizia-se ateu e comunista e, como é comum nessa fase, consumia maconha com os amigos e pornografia na internet. Há dois anos, diz, “abriu-se em mim a necessidade de ser cristão”. Ele se converteu ao catolicismo da linha tradicionalista e mudou da água para o vinho: hoje, sente-se isolado pelos colegas da faculdade, que “vivem um ideário esquerdista”, e condena as moças que usam short, saia curta e camiseta que deixa a barriga de fora. “Isso atenta contra a dignidade da mulher e seu valor como ser humano”, afirma Schmidt, que namora Bárbara Yabrudi, 20 anos, estudante de cinema que também passou por uma conversão marcante. Acostumada a sair toda noite e a beber bastante, ela hoje é adepta da saia abaixo dos joelhos, do véu na missa e do sexo só depois do casamento. “Eu vivia de prazeres momentâneos. Sentia um vazio muito grande”, relata. Sua transformação impactou a família. “Primeiro meus pais ficaram aliviados por eu estar mais caseira e nossa relação melhorou. Hoje eles acham um pouco exagerada a questão da castidade, por exemplo”, confessa.
A cruzada contra conceitos identificados com “marxismo cultural” (vade-retro) levou os católicos tradicionalistas a votar em massa em Jair Bolsonaro nas últimas eleições, mas ele não conta com seu apoio incondicional. “Enxergamos Bolsonaro como o mal menor”, esclarece Pedro Felipe Almeida, 21 anos, estudante de direito da UFRJ. “Toleramos este governo com muita má vontade, porque está longe de representar o ideal católico. O Estado tem de estar submetido à lei de Deus”, diz o professor Eduardo Cruz, que pretende fundar o Partido dos Cristeros (nome de um grupo de mártires mexicanos). Entre as críticas ao atual mandatário estão o excesso de influência neopentecostal, o liberalismo econômico e o apoio ao sionismo. O maior país católico do mundo não é o único onde se vê um aumento do conservadorismo. As missas em latim estão em alta na Europa, o berço do catolicismo, e, principalmente, nos Estados Unidos, onde 22% se definem católicos: atualmente elas são rezadas em quase 600 igrejas americanas, de acordo com o portal Latin Mass Directory.
À frente de uma paróquia no Estado de Michigan que oferece as duas versões da missa, o padre americano Robert Sirico, presidente do Instituto Acton, de estudos da religião, garante que é a liturgia à moda antiga que anima o maior número de jovens. “Muitos vêm por curiosidade, atraídos pelo clima de mistério que cerca a missa em latim. Digo que são hipsters tridentinos”, brinca. “O que se vê na juventude que aderiu ao rito tradicionalista é a valorização do passado idealizado. Parece que eles sentem uma grande saudade do que não viveram”, observa o especialista Mérida. Quem diria: para uma legião de jovens, o mundo moderno fica mais fácil de ser entendido em latim.
Publicado em VEJA de 13 de novembro de 2019, edição nº 2660