Diz a profecia que ele seduzirá e arrebanhará multidões, reinará e perseguirá os fiéis até que Jesus Cristo retorne à Terra para botar um ponto-final nas hordas das trevas. Mas há quem tenha pregado que sua figura já esteve entre nós, personificada por gente de carne e osso como Nero, Maomé, Napoleão, Hitler e Bin Laden, ou escondida nos centros do poder de instituições como a própria Igreja romana e na engrenagem burocrática da União Soviética. Não espere, contudo, consenso sobre a identidade e os desfeitos do príncipe da discórdia. Eis uma das principais lições sobre o “mal encarnado” dadas pelo professor emérito de história da religião Philip Almond, da Universidade de Queensland, na Austrália, no recém-lançado O Anticristo: uma Biografia (Editora Vozes).
O percurso desse ser nascido como a antítese de Jesus remonta às primeiras décadas do cristianismo. Se o filho de Deus viveu entre nós, o herdeiro de Satanás também estaria à espreita. A primeira menção ao nome data de cerca de setenta anos depois da morte de Cristo, na primeira Epístola de João. A partir daí, teólogos e profetas passaram a vaticinar quando ele viria ao mundo, naquilo que seria o marco do ocaso dos tempos. Aí residem o êxito e a sobrevivência do mito ao longo dos séculos e entre diferentes culturas. “Ele é uma figura escatológica, isto é, alguém cuja aparição sinaliza o fim do mundo”, disse Almond a VEJA. “As preocupações com esse evento, seja por meio de um holocausto nuclear, seja por um desastre ambiental, levam as pessoas a se perguntar quem poderá ser o Anticristo agora.” Os ingredientes da profecia foram colhidos de textos bíblicos como o Livro de Daniel, no Velho Testamento, e o Apocalipse, do Novo Testamento, que, apesar de descrever o fim de tudo, não cita o personagem.
Fato é que o Anticristo sofreu inúmeras metamorfoses. Entre tantas versões deixadas para a posteridade, ganhou evidência a ideia de um ser humano parido de uma mulher possuída pelo Diabo, nascido na Babilônia e oriundo da tribo de Dã, uma das doze ramificações judaicas. Ele assassinaria santos profetas que retornariam à Terra para alertar sobre o mal iminente, corromperia os povos com seus embustes — poderia até ressuscitar mortos! —, mas seria derrotado por Jesus Cristo e seu exército celestial, abrindo caminho à eleição dos justos para o Céu e à condenação eterna dos pecadores no Inferno. Mas não há versão oficial: uma delas dá conta de que o inimigo seria trucidado pela espada do Arcanjo Miguel, por exemplo.
Na trajetória narrada por Almond, duas correntes sobre o Anticristo se entrelaçam: uma que vê manifestações do príncipe maligno no passado — ele teria se revelado como Nero e Napoleão Bonaparte —, outra que vislumbra seu rompante em um futuro não tão distante. Também se discute de onde ele emergiria. “A descoberta mais fascinante durante a pesquisa para o livro foi que, desde o ano 1000, o Anticristo se dividia entre uma figura dentro da Igreja Católica, especialmente o papa, ou fora dela, como um déspota autoritário”, diz Almond. “Mas, desde meados do século XIX, o Anticristo papal desaparece e permanece só a figura secular.”
Embora a história tenha sido concebida e nutrida nas franjas da Igreja, cujos pregadores atribuíram a identidade do vilão a muçulmanos, judeus e outros “infiéis”, os reformadores — “hereges”, na visão da cúria — buscaram lançar o epíteto contra o próprio papa e a instituição, acusados de hipocrisia e deturpação dos ensinamentos bíblicos. Martinho Lutero está entre os que engrossaram a fileira — e, não à toa, ele mesmo foi associado, pelos seus críticos, ao emissário das trevas. Em paralelo, pairava no ar a ameaça de um tirano maligno, encarnada em imperadores romanos a perseguir cristãos e, posteriormente, em ditadores como Hitler, Mussolini e Saddam Hussein. “Acredito que o Anticristo substituiu o Diabo como arquétipo do mal na cultura ocidental. Ele atende ao desejo de ser identificado com figuras políticas atuais, seja literal, seja metaforicamente”, afirma Almond. O mito se atualizou no século XX com direito à passagem pelo cinema — quem não se recorda do menino Damien, de A Profecia (1976)? — e como influência satânica a ser esconjurada em palanques e cultos. No fundo, como já defendiam alguns teólogos séculos atrás, antagonizamos o outro, mas esquecemos que as forças do bem e do mal podem habitar cada um de nós. A ideia do Anticristo persiste, colada ao temor do fim dos tempos, em permanente desafio à ética e à bondade humanas.
Publicado em VEJA de 28 de junho de 2024, edição nº 2899