Afastado do cargo desde 28 de agosto pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ), por suspeita de corrupção, o governador do Rio de Janeiro, Wilson Witzel (PSC), dispara sua metralhadora contra o presidente Jair Bolsonaro, a quem se refere o tempo todo como seu algoz. Em entrevista a VEJA no Palácio das Laranjeiras, onde segue morando com a mulher, Helena, e três dos quatro filhos, ele, sempre acompanhado dela, desce fundo nos episódios em que, em sua ótica, foi sendo construído o fosso que agora o separa de Bolsonaro – que, lembre-se, lá atrás foi decisivo para catapultá-lo ao governo estadual.
O ex-juiz federal, alvo de dois mandados de busca e apreensão pela Polícia Federal, sustenta que a ira presidencial acendeu-se já no primeiro encontro, onde expôs seu plano de chegar ao posto máximo do Planalto – “um ato de inexperiência política”, admite, sem baixar a artilharia. Diz que entrou na mira por comandar o estado-chave para o clã Bolsonaro. No hoje silencioso palácio, em que dá para ouvir um tilintar de talheres, ele emprega o tempo em sua defesa para escapar da degola do impeachment. Sustenta que sua carreira política não acabou e que o sonho presidencial segue pulsante. Mas, se considerar que as instituições estão conspirando contra ele, entrega: pode vir a pedir um asilo político. Onde? “Penso no Canadá.”
Em que medida seu afastamento do governo tem a ver com as fissuras com a família Bolsonaro?
O presidente só pensa na reeleição de 2022 e pôs na cabeça que todos os seus adversários precisam ser abatidos. Essa história começou lá atrás, quando Bolsonaro tinha acabado de vencer e me disse que não disputaria um segundo mandato. Então eu, também recém-eleito, falei logo em nosso primeiro encontro: “Vamos trabalhar juntos? Quero ter a oportunidade de concorrer ao Planalto.” Não demorou muito e ele começou a espalhar que o governador do Rio, um ex-juiz federal que sabe manipular provas, queria destruir a família dele por ganância de poder.
O senhor se arrepende desse diálogo?
Me arrependo. Dei motivo para ele criar uma narrativa contra mim. Para o eleitor do Bolsonaro, sou o traidor número 1. Foi um ato de inexperiência política.
Certamente não foi só esta conversa que estremeceu a relação entre vocês.
Teve um dia em que esbarrei com o presidente na festa de aniversário de um ministro do TCU. Ele me chamou no canto e pediu: “Governador, não faça nada contra os meus filhos.” Perguntei: “Mas fazer o quê?” E ele: “Nenhuma maldade”. Ele achava que eu plantaria provas contra os filhos dele, o Carlos, o Flávio. Como se sabe, há investigações delicadas no Rio de Janeiro que envolvem a família. Não é exagero dizer que a República gira hoje em torno da proteção ao Flávio Bolsonaro.
Pode ser mais específico?
O Ministério Público Federal foi cooptado parcialmente e faz aquilo que é de interesse do governo. A Polícia Federal também.
A ruptura com o presidente se aprofundou quando a Polícia do Rio divulgou os suspeitos de matar a vereadora Marielle Franco, como foi ventilado?
Sim. Ao assumir, determinei que investigassem a fundo o caso. Nunca tinha ouvido falar dos nomes de Ronnie Lessa e Élcio de Queiroz até que eles foram presos, suspeitos da execução. Aí meu secretário de polícia me liga e diz: “Essas prisões podem ter repercussão grande. Talvez atinjam a imagem de políticos.” Quando soube que Lessa era vizinho do presidente no Rio, tive a dimensão do problema. Encontrei com Bolsonaro em uma cerimônia, em Itaguaí, em outubro de 2019. “O próximo que assumir a Presidência do país terá que saber governar sem covardia”, ele disparou, e me olhou com raiva. Pouco tempo depois veio à tona a história do porteiro do condomínio dele, que teria telefonado para sua casa no dia do crime, anunciando a chegada de um dos assassinos. Bolsonaro afirma que fui eu o vazador da informação. Mentira.
A viúva do miliciano e ex-capitão do Bope, Adriano da Nóbrega, afirmou que o senhor estaria envolvido em sua morte, na Bahia. Ela contou ainda que o senhor recebeu dinheiro de campanha dele. Procede?
Só tomei conhecimento dessa operação na Bahia e da morte do capitão Adriano quando meu secretário de polícia, Marcus Vinícius Braga, me ligou comunicando o ocorrido. Falou de forma até efusiva, o que na hora estranhei: “Matamos o capitão Adriano”, avisou. Até aquele momento, nem sabia quem era Adriano. Recursos dele na minha campanha, então, nem pensar.
E o que o senhor sabe agora sobre Adriano?
Ele era um parceiro da família Bolsonaro, tinha até parentes trabalhando no gabinete do Flávio (então deputado estadual), envolvidos na rachadinha. A informação que chegou a mim, inclusive, foi a de que Adriano poderia ter uma participação na rachadinha semelhante à do próprio Fabricio Queiroz.
Em que bases se daria esta participação?
Não sei detalhes.
Na defesa enviada à comissão mista da Alerj, que vai decidir sobre seu impeachment, o senhor põe a culpa da corrupção dentro do governo do Rio em seus chefiados. Com tanta roubalheira em curso, não foi no mínimo omisso?
Se não tivesse permitido que os instrumentos de controle funcionassem, sim, teria sido omisso. Mas fiz o contrário. Pedi ao secretário da Saúde, Edmar Santos, para sanar os problemas das Organizações Sociais que mantinham contrato com o governo. Aí determinei uma auditoria, que durou dez meses e apontou superfaturamentos nesses contratos.
Por que deu o sinal verde para o seguimento dos contratos mesmo sabendo que as Organizações Sociais em questão apresentavam problemas?
Não tenho como autorizar cada contrato, com a “OS A” ou a “OS B”. No caso de uma dessas organizações, a Unir, fui chamado a arbitrar como governador. E tomei a decisão de reclassificá-la porque não era uma das piores.
A peneira pública não deveria ser mais elevada?
Se cancelasse o contrato com esta OS, teria que replicar a decisão em relação a todas as outras. E como a gente substituiria os profissionais no meio de uma pandemia? Com o Estado em Regime de Recuperação Fiscal, não dá para fazer concursos públicos. A solução que estava sendo gestada era substituir essas organizações pela Fundação Estadual de Saúde ou passar os hospitais para parcerias público-privadas.
O que dizer da pilha de 8 milhões de reais encontrada com o seu ex-secretário da Saúde?
Para começar, desses 8 milhões, o Edmar declara que 7 milhões eram do período em que foi diretor do Hospital Pedro Ernesto, entre 2016 e 2019, pegando só um ano do meu governo.
Mas não poderia haver nenhum centavo desviado, certo?
Não, mas esta diferença de 1 milhão perto de um orçamento de 5 bilhões de reais da Saúde é mínima. Você nunca vai conseguir efetividade máxima no combate à corrupção.
Uma delação trata de um montante de 50 milhões de reais que teriam sido sugados pela corrupção em sua gestão. E o que dizer deste dinheiro?
Até agora o Ministério Público não comprovou nada disso, nem achou um centavo na minha conta.
Foi só o senhor ser afastado para o agora governador interino Claudio Castro se aproximar dos Bolsonaro. Sentiu-se traído?
Não tenho nenhum tipo de rancor. O Claudio Castro não se enquadra na narrativa criada contra mim pela família Bolsonaro. A aproximação é uma medida de sobrevivência dele, lógico.
O senhor diz que voltará ao governo. Baseia-se em quê?
Fui vítima de uma farsa que será desconstruída juridicamente. O tribunal misto tem que julgar de acordo com as provas dos autos do processo, de forma técnica. Se não o fizer, o julgamento pode, inclusive, ser anulado.
Os contratos do escritório de advocacia da primeira-dama Helena Witzel são citados nas investigações. Por aí, o senhor pode ter problema?
O escritório só ganha relevância nesta história porque, supostamente, as empresas (clientes de Helena) são ligadas ao Mário Peixoto (preso por suspeitas de desvios na Saúde). Mas a Operação Favorito ainda não conseguiu provar que ele era o administrador de fato dessas empresas que contrataram minha mulher.
E a interceptação telefônica em que um operador de Peixoto menciona seu nome?
É a única coisa que me coloca nesse enrosco todo. Não dá para chegar a conclusão nenhuma a partir daí.
Faz jus a comparação entre Helena e a ex-primeira-dama Adriana Ancelmo, também advogada?
É esdrúxula. A Adriana Ancelmo tinha contrato com a Oi, com a Cedae. Só um contrato dela era de 11 milhões de reais. Da Helena, por mês, não chegava a 50 000 reais. E as empresas que a contrataram, garanto, não têm relação com o governo do Estado.
E o trabalho de Helena com o PSC, seu partido, não é uma mistura de interesses?
Não, e a ideia era deixá-lo à medida que o escritório fosse expandindo.
O senhor tem medo de ser preso?
Não há elementos para decretar minha prisão.
Ainda planeja ser presidente da República?
Minha missão na política está apenas começando. Tenho ainda o sentimento patriótico de ser presidente.
E se acabar sendo afastado definitivamente, o que vai fazer?
Se perceber que há perseguição política e cooptação das instituições contra mim e a minha família, pretendo pedir asilo político no Canadá. Consigo emprego em qualquer lugar do mundo.