Tragédia climática dá tom nacional à disputa para prefeito de Porto Alegre
Debate sobre falhas na prevenção e atuação no socorro às vítimas das chuvas estão no centro do embate entre Sebastião Melo (MDB) e Maria do Rosário (PT)
As águas que transbordaram do Guaíba durante as fortes chuvas que atingiram todo o Rio Grande do Sul entre maio e junho destruíram muitas cidades e não pouparam a capital do estado. Os vazamentos colocaram à prova o sistema de prevenção de Porto Alegre — e, como se viu, ele não passou no teste. A catástrofe mandou quase 15 000 pessoas para abrigos, interditou o Centro Histórico e vias importantes, fechou lojas e indústrias, bloqueou o transporte público e interditou até o Aeroporto Salgado Filho. Diante do ocorrido, a eleição municipal deste ano virou uma das mais importantes da história gaúcha e ganhou um tom nacional.
O debate político já começou a ser impregnado pela busca por eventuais culpados, pela apuração das falhas e pelo escrutínio de como cada um se comportou ou está se comportando em um dos momentos de maior desespero da população. Espera-se que a campanha não vire apenas uma enxurrada de acusações. A capital gaúcha precisa de propostas para se recuperar nos próximos anos. Além disso, casos como o de Porto Alegre abrem uma oportunidade para se fazer uma discussão mais séria sobre como preparar melhor as metrópoles brasileiras diante da realidade e das consequências dos extremos climáticos.
Os principais contendores pelo comando da capital já estão bem definidos. A disputa deve se dar entre o prefeito Sebastião Melo (MDB) e a deputada Maria do Rosário (PT). Em campanha para aquela que deve ser a reeleição mais difícil deste ano em todo o Brasil, Melo enfrenta críticas por sua atuação diante dos alagamentos, sobretudo em relação às falhas nas comportas e nos sistemas de bombas. Embora admita alguns erros na gestão dos equipamentos de proteção, o prefeito passou a jogar a responsabilidade pelo atendimento às vítimas e pela recuperação da cidade para a União e subiu o tom da cobrança ao presidente Luiz Inácio Lula da Silva. “Temos de fazer a nossa parte, mas obras pesadas precisam ser assumidas pelo governo federal”, diz.
A reação do prefeito embute um raciocínio eleitoral: é um antídoto para a quase certa estratégia de sua principal adversária de tentar capitalizar as ações federais no estado e na cidade. Maria do Rosário tem divulgado as medidas adotadas pelo governo Lula e feito críticas à gestão municipal e à suposta falta de preparo de Melo para lidar com mudanças climáticas. Também visitou abrigos e publicou nas redes sociais vídeos nos quais moradores desabafam sobre a situação crítica da capital. “Tem sido uma prática do Sebastião Melo transferir a responsabilidade, mas o prefeito da cidade é ele, não o presidente Lula”, afirma.
O petista, de fato, jogou pesado no Rio Grande do Sul. A administração federal anunciou o investimento de 85,7 bilhões de reais, inaugurou um escritório de monitoramento em Porto Alegre, divulgou a criação do Auxílio Reconstrução, no valor de 5 100 reais para cada família de desabrigados, antecipou o Bolsa Família, auxiliou na montagem de hospitais de campanha, enviou medicamentos e criou linhas especiais de crédito para as vítimas das chuvas, entre outras medidas. O próprio Lula esteve no estado três vezes.
Melo, no entanto, acha que há muitos anúncios e pouca entrega, especialmente na questão habitacional. “Porto Alegre hoje dispõe de 1 000 imóveis entre novos e usados que chegam à faixa dos 170 000 a 200 000 reais. Acho que o presidente Lula já deveria ter comprado esse lote. Mas não. Não compra imóvel, não apresenta alternativa e ainda não coloca um centavo nos abrigos”, disse. Depois da crítica, o governo federal assinou uma portaria que possibilita a compra de imóveis já prontos para atender aos desabrigados pelas enchentes no estado. O prefeito também cobra apoio à recuperação econômica. Para se ter ideia do tamanho do problema, o Rio Grande do Sul arrecadou 990 milhões de reais a menos em ICMS do que o esperado para junho. A queda se deve principalmente à paralisação das atividades econômicas e vai refletir nos cofres da prefeitura. Na última visita de Lula, Melo fez questão de ir à Base Aérea de Canoas e entregar ao presidente o tamanho da conta para a recuperação da cidade: 12,3 bilhões de reais.
Com a adversária disposta a explorar as ações do governo federal e com a mira voltada para ele durante a campanha, os movimentos de Sebastião Melo na reconstrução de Porto Alegre nos próximos meses devem ser decisivos para seu desempenho na eleição. O prefeito coordenou esforços de limpeza e desobstrução de vias públicas, garantiu o restabelecimento de serviços essenciais, como água e energia elétrica, e organizou a assistência às famílias afetadas, fornecendo abrigo. Mas ainda há muita coisa pendente, como a reconstrução de equipamentos públicos e a questão habitacional. Durante a campanha, provavelmente a capital ainda vai estar fora da normalidade. A previsão para reabertura do aeroporto é apenas na segunda quinzena de dezembro. Muitas ruas seguem cheias de lixo e entulhos. Algumas escolas ainda não reabriram. Parte do comércio continua fechada.
Além do clima pesado na campanha em razão dos desdobramentos da tragédia, a eleição na capital gaúcha deve ter também um caráter de polarização entre direita e esquerda. O PL, partido do ex-presidente Jair Bolsonaro, pretende apoiar Sebastião Melo, como fez no segundo turno de 2020, quando ele derrotou Manuela d’Ávila (PCdoB). “O PL tem garantida a vaga de vice-prefeito na chapa”, diz o presidente estadual do MDB, Vilmar Zanchin. Melo também tinha a esperança de contar com Eduardo Leite, mas, no que depender do governador, isso não deve acontecer. “Eu sou defensor de candidatura própria do PSDB na capital”, afirmou o tucano a VEJA. Segundo o presidente nacional do PSDB, Marconi Perillo, o mais cotado para a tarefa é o ex-prefeito Marchezan Jr., que resiste à ideia. Ele não chegou nem ao segundo turno em 2020, quando tentou a reeleição.
O histórico político de Porto Alegre é mais favorável à esquerda. Desde a redemocratização, o PT ocupou a prefeitura por quatro mandatos, com Tarso Genro, Olívio Dutra, Raul Pont e João Verle. Já o PDT esteve à frente da cidade duas vezes, com Alceu Collares e José Fortunati. Nos últimos anos, a centro-direita virou o jogo com Marchezan Jr., em 2016, e Melo, em 2020. Na eleição presidencial de 2022, Lula foi o mais votado na capital (53,5%) no segundo turno. A disputa municipal, aliás, é de extrema importância para o PT. Além de mostrar a força de Lula, a sigla precisa se recuperar do desempenho pífio do último pleito, quando não ganhou nenhuma capital. Além disso, o agora ministro da Reconstrução do Rio Grande do Sul, Paulo Pimenta, planeja ser o nome do partido ao governo em 2026.
O que o eleitor espera, no entanto, é que o debate não seja como em 2020, quando a polarização ideológica deu o tom. Algumas ideias ventiladas na atual campanha parecem mirar a um debate mais elevado. Sebastião Melo já anunciou uma parceria com o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (Pnud) para aplicar 1,2 milhão de dólares em uma estratégia de revisão urbanística e de ocupação. Segundo a prefeitura, está em andamento a elaboração de um Plano de Ação Climática que inclui medidas de adaptação, aquisição de equipamentos para a Defesa Civil e instalação de sistema de alerta de riscos climáticos em dez pontos da cidade, com comunicação em tempo real. Maria do Rosário defende a necessidade de recuperar os sistemas de bombas e comportas internas, a criação de planos específicos para áreas mais afastadas do centro e melhora da coleta seletiva e tratamento de lixo. Historicamente, a questão das mudanças climáticas não tem apelo eleitoral. Mas uma tragédia como a vivida pelos gaúchos tem potencial para mudar isso.
Colaborou Adriana Ferraz
Publicado em VEJA de 21 de junho de 2024, edição nº 2898