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Tancredo, por FHC

Num livro com 41 perfis de brasileiros ilustres, o ex-presidente escreve sobre o estadista que, há 35 anos, o destino impediu que comandasse a nação

Por Roberto Pompeu de Toledo Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO Atualizado em 4 jun 2024, 15h00 - Publicado em 10 abr 2020, 06h00

“Época de gigantes.” Assim escreve Fernando Henrique Cardoso, ao qualificar os líderes que possibilitaram a vitoriosa candidatura de Tancredo Neves a presidente da República, na eleição indireta de 1985. E explica: “Montoro se autolimitou para dar espaço a Tancredo, Ulysses seria o espadachim de Tancredo, e este ganharia os necessários apoios na sociedade, no Congresso e nas demais instituições de poder”. Que saudade, e que tombo vertiginoso vitimou o país, da época dos gigantes da redemocratização à insignificância da liderança hoje à frente da nau chamada Brasil.

As considerações de FHC sobre o período estão no livro Brasileiros, que acaba de ser lançado. A obra reúne perfis de 41 personalidades nacionais já falecidas, elaborados por pessoas que com elas mantêm ou mantiveram alguma afinidade — profissional, familiar, de admiração ou de interesse acadêmico. Para citar uns exemplos, a socióloga Celina Vargas do Amaral Peixoto escreve sobre o avô, Getúlio Vargas, a professora Célia Arns sobre a tia Zilda Arns, o cineasta Cacá Diegues sobre Glauber Rocha e o produtor musical Nelson Motta sobre Vinicius de Moraes. A Fernando Henrique Cardoso coube Tancredo Neves. “Não cultuamos nossos heróis”, escreve na introdução o escritor e jurista José Roberto de Castro Neves, organizador da obra. “Diferentemente de outros povos (…) não exaltamos os grandes brasileiros.” Os personagens do livro oferecem, segundo Castro Neves, “histórias edificantes, de escolhas corajosas e difíceis, cheias de vida, permeadas de milagres e de pecados”.

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FHC, ao descrever Tancredo, não escapa do paradoxo de nele conviverem o político mineiro de caricatura, matreiro, envolvente, ambíguo, e o estadista capaz de levar suas convicções e lealdades até as últimas consequências. É “verdadeiro”, escreve, que ele preferia dizer “o que lhe parecia conveniente” àquilo em que “verdadeiramente cria e faria”. Mas, a seu ver, o que mais lhe caracterizaria a trajetória seria “o homem de convicções, de coragem e de conhecimento dos principais dossiês econômicos e financeiros do país”. Tancredo acompanhou fielmente, até a morte, tanto Getúlio Vargas, de quem foi ministro da Justiça, quanto João Goulart, de quem foi primeiro-ministro no interregno parlamentarista. Num caso e no outro, em desafio aos vitoriosos do momento, fez memoráveis discursos à beira dos túmulos.

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BRASILEIROS, organização de José Roberto de Castro Neves (Nova Fronteira; 448 páginas; 69,90 reais e 49,99 reais na versão digital) (./.)

É sugestiva a escolha de Fernando Henrique para escrever sobre Tancredo. Um (Tancredo) desde sempre revelou vocação e ambição de chegar à Presidência. Quem foi vereador na cidade natal (São João del-Rei), deputado estadual, deputado federal, primeiro-ministro, senador e governador de estado, e revelou por onde passou o domínio da arte da política e da ciência da administração pública, pareceu desde sempre predestinado a chegar ao mais alto posto. O outro (FHC) é um intelectual tardiamente desviado para a política, conduzido pelas circunstâncias a comandar a luta contra a hiperinflação, e daí catapultado à Presidência, sem nunca antes ter previsto nem desejado tal destino. Um chegou lá, mas, com a absurda internação na véspera da posse, e a morte 37 dias depois, não levou; o outro levou, com o instituto da reeleição, em dose dupla.

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Os opostos golpes do destino são permeados de coincidências de caráter e de estilo. Tancredo sabia ouvir, diz FHC. Ele afirma ter testemunhado “a ansiedade” com que os políticos o procuravam, depois de eleito, e a “calma” com que Tancredo os ouvia, “quase sem secretários, senão que sem eles, e sem tomar notas”. “Saber ouvir, embora sem prometer cumprir o desejado pelo interlocutor, é a marca do bom político.” Nesse ponto Fernando Henrique lembra uma lição de seu pai, militar de profissão, que, preso na fortaleza da Laje, na Baía de Guanabara, por participar das “revoluções” tenentistas dos anos 1920, pregava a necessidade de sempre conversar com o carcereiro. Tancredo, para FHC, exercia a arte de conversar “com sedução de gozo”. O próprio FHC talvez não chegue a tanto, mas também fez da conversa uma arma política.

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Outra característica comum é o empenho em conhecer as questões em jogo. FHC demonstrou-o quando, sem ser economista, se incumbiu de infindáveis preleções sobre o Plano Real. Tancredo evidenciou-o num episódio em que Fernando Henrique, então senador, foi contatado por um representante do governo americano, naqueles primeiros meses de 1985, para sondar as perspectivas do novo governo: “Procurei Tancredo para saber o que dizer e recebi instruções precisas sobre como responder às questões de política cambial e financeira. Fiquei surpreso com os detalhes manejados pelo presidente eleito”. O episódio ilustra quão amputado em sua condição de líder se vê o político que, por ignorância, preguiça ou desinteresse, abdica das questões de fundo, mesmo quando, com singelo humor, as entregue a subordinados apelidados de “Posto Ipiranga”. E quão poupado seria o mesmo político, caso fizesse a lição de casa, de se sentir humilhado, ou corroído pela inveja e pelo ciúme, ao dividir a cena com ministros que sabem do que falam.

Se tivesse vencido a campanha das “diretas-já”, escreve FHC, “as chances do voto popular estariam provavelmente com Franco Montoro, governador de São Paulo, ou, mais dificilmente, com Ulysses Guimarães”. Como isso não ocorreu, os grandes do PMDB abriram caminho para Tancredo, considerado o mais hábil para costurar alianças na bancada governista, atrair apoios na sociedade e enfrentar focos descontentes no meio militar. Vencida a eleição, restava ainda afastar a ameaça de que se tentasse impedir a posse do eleito. Escreve FHC: “Recordo-me que tínhamos mesmo um plano para o caso de alguma reação militar negativa: do Paraná para o Sul haveria base para uma reação e o próprio presidente eleito poderia facilmente deslocar-se para aquela região”.

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FHC arrisca dizer que, sob Tancredo, o país teria tomado rumo diverso. “Tancredo talvez postergasse a convocação de uma Assembleia Constituinte e, dado seu temperamento precavido, conservador mesmo, preferiria primeiro mastigar melhor o que poderia resultar de sua convocação.” A Constituição, promulgada um ano antes da queda do Muro de Berlim, “nasceu impregnada com os valores da época: estatizante e, no fundo, anticapitalista”, o que obriga até hoje a constantes e dificultosas revisões. “Tancredo, crível, experiente, e com apoio popular (…), não deixaria que excessos se transformassem em artigos constitucionais.”

Brasileiros é um livro desigual como todos os que reúnem autorias diversas, mas tem estofo para ensinar, surpreender e divertir. Fernanda Montenegro escreve sobre Irmã Dulce, em quem enxerga uma “inalcançável ativista feminina”. Acrescenta a grande atriz: “Fui aos poucos tomando consciência do ‘mistério’ que é Irmã Dulce como personagem. Quanto mais religiosa, mais agitadora, mais independente, mais liberta”. Renato Aragão escreve sobre Oscarito e conta que adolescente, em Sobral, assistiu dezesseis vezes ao filme Aviso aos Navegantes (1950), estrelado pelo ídolo. O jornalista Fábio Altman, redator-chefe de VEJA, escreve sobre o atleta João do Pulo, “personagem clássico da difícil aventura brasileira: o sujeito que vem quase do nada, vence o preconceito, conquista o mundo, e depois cai, assaltado pela falta de sorte e pelo descaso dos que o cercam”. A jornalista Sonia Nolasco escreve sobre Paulo Francis, com quem foi casada, e conta que, desastrado, ele se identificava com o inspetor Clouseau, da Pantera Cor-de-Rosa, e morria de rir de Dercy Gonçalves.

P.S.: o texto integral de Fernando Hen­rique Cardoso, que ocupa dezesseis páginas do livro, está disponível no site de VEJA

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Publicado em VEJA de 15 de abril de 2020, edição nº 2682

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