Só daqui a 100 anos: aumenta a lista de sigilos do governo Bolsonaro
A imposição de segredo sobre registros de visitas ao Palácio no Planalto engorda a política de falta de transparência do governo federal
Fazia apenas 24 dias que o presidente Jair Bolsonaro (PL) havia assumido o mandato quando o Diário Oficial da União trouxe um decreto presidencial que causou perplexidade em Brasília: a medida ampliava o rol de pessoas que poderiam impor sigilo ultrassecreto a documentos públicos, estendendo esse poder a assessores com cargos comissionados e dirigentes de autarquias, fundações e empresas públicas. Antes, a atribuição de grau máximo de segredo a qualquer documento público era algo restrito ao primeiro escalão do governo, chefes de missões diplomáticas e comandantes militares. A medida criou controvérsia, foi suspensa pela Câmara e, um mês depois, revogada por Bolsonaro. O presidente recuou, mas a sinalização emitida pelo documento seguiria norteando as políticas do atual governo, que deu muitos passos atrás em relação à transparência do Estado.
Desde então, os exemplos foram se acumulando. O último veio há pouco mais de uma semana, quando o general Augusto Heleno, comandante do Gabinete de Segurança Institucional (GSI), impôs 100 anos de sigilo sobre os registros de entrada no Palácio do Planalto de uma série de pessoas, incluindo dois pastores investigados por suspeita de corrupção no Ministério da Educação — Gilmar Santos e Arilton Moura. Os dados acabaram liberados após um parecer da Controladoria-Geral da União (CGU), mas permaneceram no pacote de sigilo as visitas do senador Flávio Bolsonaro (PL-RJ), do vereador Carlos Bolsonaro (Republicanos-RJ) e do presidente do PL de Bolsonaro, Valdemar Costa Neto. Questionado por um usuário no Twitter sobre os motivos para colocar sigilo em assuntos espinhosos ou polêmicos e se existia algo a esconder, Bolsonaro preferiu ironizar. “Em 100 anos, saberá”. A CGU diz que o sigilo sobre visitas dos filhos do presidente foi justificado pelo GSI como questão de segurança e que os dados devem ser liberados ao fim do mandato de Bolsonaro.
É difícil acreditar na promessa, levando-se em conta a já extensa lista de atos na mesma direção do atual governo. No fim de fevereiro, o Ministério das Relações Exteriores também havia decidido bloquear por cinco anos o relatório da viagem de Bolsonaro à Hungria e à Rússia, quando se encontrou com o presidente Vladimir Putin às vésperas da invasão da Ucrânia. O Itamaraty não divulgou detalhes, como compromissos assumidos durante os encontros ou o tema de reuniões com autoridades do governo russo e empresários, que foram pedidos em um requerimento na Câmara. A constatação de que a transparência vai mal vem inclusive da própria gestão. Um levantamento do governo mostra que órgãos do Executivo já deveriam ter disponibilizado 1 089 bases de dados, que, no entanto, seguem indisponíveis. São páginas abertas para consultas pela população, com informações que vão de tarifas das concessionárias de energia elétrica à execução financeira detalhada do Comando do Exército, passando pela política fundiária do Incra e pelas autorizações ferroviárias privadas concedidas pelo Ministério da Infraestrutura.
A desconfiança não é motivada só pelo que não é divulgado, mas também pelo que foi. Um dos exemplos envolveu a Covid-19, quando, em junho de 2020, o Ministério da Saúde resolveu tirar os dados de casos e mortes para mudar os critérios de divulgação, o que foi considerado inadequado pela comunidade científica. O outro foi quando o governo divulgou na COP26 um relatório mostrando a queda do desmatamento, quando já tinha recebido outro balanço atualizado que mostrava o contrário (veja o quadro). “Essa é a política do segredo: não temos dados e, quando temos, não se sabe de onde eles vêm, como foram produzidos, nem se estão corretos”, alerta Denise Dora, diretora-executiva da Artigo 19, uma ONG estabelecida em Londres que se dedica a promover a liberdade de expressão e o direito à informação.
Além da pouca transparência com os dados que já possui, o governo também não se empenha em viabilizar os que ainda precisam ser produzidos. O Censo do IBGE deveria ter sido feito em 2020 para manter a série histórica, mas foi adiado várias vezes sob alegações diversas, que foram da falta de dinheiro à impossibilidade de executar o trabalho em meio à pandemia. No ano passado, no entanto, o governo optou por reduzir em mais de 95% o orçamento de pesquisa do instituto, inviabilizando o recenseamento. Já no primeiro ano de governo, o ministro Paulo Guedes (Economia) chegou a dizer que “muita coisa não é importante” na pesquisa, justificando cortes no questionário. O Censo é o mais relevante levantamento demográfico do país, mas não só isso: ele é fundamental para a definição de políticas públicas, como as de combate à fome, as políticas de transferência de renda, a construção de moradias, a ampliação do serviços de saúde e os investimentos em saneamento básico.
Essa postura provocou uma inegável piora do desempenho brasileiro em índices internacionais que medem a transparência dos governos. Em um levantamento produzido pela ONG internacional World Justice Project, que apura a qualidade e transparência em 139 países, o Brasil perdeu 25 posições desde o início da gestão Bolsonaro e está agora na 77ª colocação. Na avaliação da abertura do governo, que mede a qualidade da informação compartilhada com a sociedade, o Brasil ficou na 41ª posição, atrás de países como Singapura e África do Sul.
Um dos agravantes para o problema é a falta de efetividade dos órgãos que têm o dever de bloquear as investidas do governo contra a transparência, como a Procuradoria-Geral da República e a CGU. Especialistas identificam até certa cumplicidade, citando como exemplo uma medida provisória assinada por Bolsonaro e pelo ministro Wagner Rosário, da CGU, que suspendia prazos de resposta a pedidos de informação em órgãos mobilizados no enfrentamento à pandemia ou que estivessem com o trabalho presencial suspenso. “É o que nós chamamos de arquitetura da impunidade: instituições sendo estruturadas para que falhem nas suas tarefas”, diz o professor Michael Mohallem, consultor da Transparência Internacional Brasil.
Na história mais recente (que ninguém quer ver repetida), a ditadura militar tinha como política dificultar o acesso a todo tipo de informação. A morte do general Newton Cruz, ex-chefe do Serviço Nacional de Informações (SNI), no último dia 15, aos 97 anos (veja em Datas, na pág. 16), serviu para lembrar do absurdo a que pode chegar a política de esconder o Estado do cidadão. Ele se orgulhava de ter destruído 19 400 documentos secretos da época, que iam das investigações sobre personalidades como o arcebispo dom Hélder Câmara e o poeta Vinicius de Moraes a um dossiê que poderia comprometer o presidente Emílio Garrastazu Médici. Não por acaso, os bons avanços obtidos pelo país na questão da transparência ocorreram após a redemocratização. A Constituição de 1988 garantiu ao Ministério Público novas funções na defesa de interesses coletivos e passou a atuar de forma mais firme na área cível. Após ter percorrido um caminho relativamente curto, mas firme, ao longo das últimas décadas na direção de garantir a participação da sociedade nos rumos do governo, o país não aceitará retrocesso na forma da volta ao estado das sombras.
Publicado em VEJA de 27 de abril de 2022, edição nº 2786