A imagem do ministro mais popular do governo Bolsonaro era motivo especial de preocupação na terça-feira 26. Sergio Moro, o chefe da pasta da Justiça e da Segurança Pública, aguardava pacientemente o fim de uma entrevista sobre a tramitação no Congresso de um dos pilares da Operação Lava-Jato: a prisão de condenados após o julgamento em segunda instância. Ao lado de deputados e senadores, o ex-juiz disputava em silêncio um espaço sob um toldo improvisado. Parte de sua silhueta estava ao sol. A outra metade do rosto, sob a sombra de uma lona. Era uma imagem a ser evitada, que poderia passar a ideia de duas caras. Poderia deixá-lo com um ar sombrio. Poderia sugerir uma posição de inferioridade diante do presidente do Senado, Davi Alcolumbre, posicionado no centro do quadro e completamente abrigado do calor. Discretamente, Moro, depois de ser aconselhado por uma assessora, moveu-se para a direita, de modo que cinegrafistas e fotógrafos não pudessem explorar a dualidade da cena. Foi mais um pequeno tento na construção diária de sua nova persona.
O ministro garante que não é candidato nas próximas eleições e diz que jamais disputaria a preferência do eleitorado com o presidente Jair Bolsonaro, mas é inegável que está cada vez mais parecido com um político — em todos os sentidos. Desde agosto, Moro tem uma espécie de consultoria informal de imagem. Abandonou as camisas escuras que foram sua marca enquanto juiz da Lava-Jato, deixou de lado o palavreado empolado, recheado de “excelências” e “escusas”, e começou a bater ponto em reuniões com políticos e bancadas partidárias. Nos últimos dois meses, quase quarenta parlamentares foram recebidos no ministério e cinco governadores capitalizaram dividendos eleitorais com a presença do ministro em eventos externos. Moro também fez questão de prestigiar almoços e jantares com as bancadas de PSDB, PSD, PSL, Novo e Cidadania. Além disso, aproximou-se de caciques do Podemos, que sonham com ele na sucessão presidencial. “Moro está cada vez mais habilidoso e cada vez mais longe do papel de juiz”, disse a VEJA um parlamentar que participou de um desses encontros. O caso da prisão após condenação em segunda instância ilustra bem a metamorfose em curso.
Em vez de defender com argumentos jurídicos o chamado cumprimento antecipado da pena, como fazia antigamente, Moro passou a enfatizar a popularidade da proposta entre grupos de eleitores e o impacto positivo que ela traria, caso aprovada, para os congressistas. “Popularidade e eleitores são palavras-chave para qualquer político”, lembra um parlamentar. O ministro também ganha terreno dentro do governo. Um dos assessores mais próximos a Bolsonaro, Jorge Oliveira, da Secretaria-Geral da Presidência, solicitou recentemente uma audiência com Moro. A pauta? “Quero conversar com ele não como ministro, mas como fã”, justificou Oliveira ao pedir reserva sobre a reunião. Empresários de alto calibre avessos à gestão Bolsonaro também foram visitados pelo ministro, nem sempre em agendas públicas. Moro esteve com a família Marinho, dona do Grupo Globo, num encontro nunca divulgado. Também foi o convidado principal de um jantar na Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (Fiesp). Em meio a afagos do patronato, ouviu do ex-presidente do Supremo Tribunal Federal (STF) Sydney Sanches que não deveria desperdiçar o capital político conquistado como juiz da Lava-Jato.
A recente imersão entre setores do PIB tem estratégia e método. O objetivo é minar a resistência ao ministro de certos setores do empresariado, que temem vê-lo em voos mais altos. O mesmo motivo o aproximou da classe política, que sempre olhou de lado para ele. Moro sabe que, apesar dos discursos, há forte resistência no Congresso, repleto de políticos enrolados com a Justiça, à prisão após condenação em segunda instância. Por isso ele resistiu a participar da reunião convocada sob o pretexto de definir uma estratégia destinada a garantir a aprovação da medida. Moro temia ser marionete num jogo de cena. Receava que seu prestígio fosse usado pelos parlamentares para passar à opinião pública a ideia de que estariam comprometidos com essa bandeira. Após refugar e receber conselhos de senadores, ele finalmente aceitou participar da reunião, depois da qual apareceu ao lado de Alcolumbre. Comprovando as suspeitas do ministro, os congressistas deixaram a votação da proposta para o ano que vem. Ou seja: Moro viu uma de suas principais bandeiras engavetada, pelo menos temporariamente — mas, como se diz, isso é do jogo. Para assessores do ministro, reveses pontuais não são necessariamente uma derrota, já que vitaminariam o discurso de que Moro precisa de um cargo com mais poderes para pôr o país nos trilhos. Diz um de seus auxiliares: “Se tudo der errado, ele vai virar vítima do sistema e poderá alegar que a única forma de enfrentar esse sistema é ser o presidente”. Em público, Moro rechaça frontalmente a possibilidade de concorrer contra Bolsonaro. Hoje, a opção que mais agrada ao ministro é ser indicado para o Supremo Tribunal Federal (STF), ainda que para uma breve temporada. São notórias as restrições de alguns ministros do STF a Moro. Ciente disso, ele começou a enviar emissários para edificar pontes com o tribunal. Esse estreitar de laços está em estágio bem mais avançado com a classe política. Diz um assessor próximo a Moro: “A aproximação é intuitiva e estratégica. Ele está pensando a longo prazo. Se for candidato a presidente ou a ministro do STF, vai precisar dessas pessoas. E agora já está dando a atenção devida a elas. Antes, via a classe política com certo desprezo. Hoje, sabe como é importante construir pontes”.
Disciplinado, Moro não tem dedicado atenção apenas às autoridades de Brasília. Tornaram-se frequentes as romarias de prefeitos a seu gabinete. Nos primeiros dias na capital do país, o ministro tinha dificuldade de alegar que não havia dinheiro para todas as demandas dos municípios na área de segurança. Agora, fala com mais naturalidade sobre o tema e, ato contínuo, posa para fotos. Em suas viagens oficiais, apesar da agenda ligada à segurança pública, o ministro tem entoado discursos mais palatáveis e dedicado longos minutos a fotos. No último dia 18, em Rio Branco, no Acre, socorreu uma senhora de 70 anos que, a postos para uma selfie com ele, passou mal e ameaçou desmaiar. Na mesma cidade, abraçou uma adolescente excepcional que, aos prantos, furou o esquema de segurança para conhecê-lo e atendeu, um a um, os vereadores que se aglomeravam com pedidos. “Acho que ele está sendo contaminado por essa bactéria da política”, diz o senador Sérgio Petecão, que o acompanhou na viagem ao Acre.
“Esse é um caso que tem de ser investigado com neutralidade, dedicação e sem politização. Essa questão do envolvimento do nome do presidente, para mim, é um total disparate. Uma coisa que não faz o menor sentido.”
O ministro Sergio Moro, sobre a citação a Bolsonaro no inquérito que investiga o assassinato da vereadora Marielle Franco
O ministro também tenta aparar as arestas com o presidente da República. Bolsonaro quer tê-lo como vice em sua chapa à reeleição. Para Moro, o importante agora é manter-se no jogo, porque ele pode ser uma alternativa do próprio Bolsonaro caso a reeleição corra riscos. No início do governo, o ex-juiz resistia a sair em defesa do presidente e da primeira-família da República. Também evitava disparar contra o ex-presidente Lula. Seu silêncio no episódio que envolve o ex-assessor Fabrício Queiroz, por exemplo, quase lhe custou o cargo há alguns meses, já que Bolsonaro esperava dele um gesto público de solidariedade. Os ventos mudaram. Recentemente, Moro defendeu enfaticamente o chefe ao rejeitar a possibilidade de os Bolsonaro serem considerados suspeitos de envolvimento na morte da vereadora Marielle Franco. “Esse é um caso que tem de ser investigado com neutralidade, dedicação e sem politização. Essa questão do envolvimento do nome do presidente é um total disparate. Uma coisa que não faz o menor sentido”, disse o ministro.
Sobre Lula, que o chamou de “canalha” assim que deixou a cadeia em Curitiba, saiu-se com ironia: “Aos que me pedem respostas a ofensas, esclareço: não respondo a criminosos, presos ou soltos. Algumas pessoas só merecem ser ignoradas”. Dias antes de assumir a pasta da Justiça, Moro agradeceu os cumprimentos de um aliado com uma mensagem enigmática: “Este é um voo de duas escalas”. A primeira é o ministério. A segunda, especula-se desde sempre, pode ser o Supremo. Mas, diante de tamanha dedicação de Moro à política, o Planalto passou a despontar no horizonte como um possível destino final.
Com reportagem de Nonato Viegas
Publicado em VEJA de 4 de dezembro de 2019, edição nº 2663