Desde que anunciou sua pré-candidatura a presidente da República, em novembro passado, a rotina, os hábitos e o comportamento de Sergio Moro mudaram substancialmente. Dois meses atrás, se alguém perguntasse ao ex-juiz a opinião dele sobre o retorno do ex-presidente Lula ao centro do debate político, receberia uma resposta evasiva, insossa, na linha do “eu prefiro não falar sobre pessoas”. Moro demonstrava então uma extrema dificuldade em reagir a ataques, se recusava a criticar de maneira veemente quem quer que fosse e não se sentia à vontade em caracterizar adversários com adjetivos mais contundentes. O máximo que o léxico do ex-ministro da Justiça conseguia produzir em uma situação de confronto era classificar Jair Bolsonaro como “populista” — ainda assim, no calor de sua demissão do cargo e depois de ser xingado de traidor e mentiroso pelo antigo chefe. Se a disputa fosse por uma vaga no Itamaraty, Moro estaria habilitado naquele tempo. Para uma batalha eleitoral que promete ser uma das mais acirradas desde a redemocratização e competindo com profissionais da política, havia dúvidas.
Na terça-feira 11, o pré-candidato do Podemos concedeu uma entrevista a VEJA. Confrontado com a mesma pergunta feita há dois meses sobre Lula, o juiz foi rápido: “É um acinte, um tapa na cara dos brasileiros, um desastre, um sinal verde para a volta da roubalheira”. E, na sequência, ainda emendou críticas pesadas à Justiça, particularmente ao Supremo Tribunal Federal, que anulou as condenações impostas a Lula pela Operação Lava-Jato. “As pessoas sabem quem está do lado certo dessa história, quem combateu a corrupção, quem cometeu corrupção e quem favoreceu a corrupção”, alfinetou. E sobre Bolsonaro? O insosso “populista” agora vem acompanhado de “mentiroso, enganador, irracional e inconfiável”. Moro diz tudo isso sem pensar muito, em um tom de voz acima do natural, cheio de inflexões, resultado de horas e horas de treinamento com fonoaudiólogos, sessões de media training e ensaios com especialistas em oratória.
Mais agressivo, o ex-ministro dispara até na direção de possíveis aliados. Explica que não pensava em ser candidato e esperou até o último instante por alguém que representasse uma alternativa eleitoralmente competitiva para liderar a chamada terceira via, o que na opinião dele não aconteceu. Agora, se irrita com as especulações de que poderá trocar a disputa presidencial por uma vaga no Senado por São Paulo, numa chapa encabeçada por João Doria (PSDB). Moro desconfia que os boatos são turbinados por campanhas “irmãs” e reafirma que não vai desistir, especialmente “em prol de alguém que aparece nas pesquisas com 1%, 2% ou 3%” — mais uma alfinetada, desta vez indireta.
“O presidente mente ao falar que acabou a corrupção. Ele não queria combater nada. Queria apenas se blindar, ficar longe do alcance da Justiça. Ele me disse que eu tinha de sair do governo porque não aceitava protegê-lo de investigações”
Mesmo com essa mudança de comportamento, não será fácil o desafio. Levantamento da Quaest Consultoria encomendado pela Genial Investimentos, a primeira feita em 2022, mostra o ex-juiz na terceira colocação, com apenas 9%. Lula lidera, com 45%, e Bolsonaro (PL) aparece em segundo, com 23%. Ciro Gomes (PDT) e João Doria registram, respectivamente, 5% e 3%. Numa análise mais cuidadosa, o levantamento até sugere que há espaço para a construção de uma candidatura de terceira via. Do total de entrevistados, 26% não querem nem a vitória de Lula nem a de Bolsonaro. Entre eles, 44% disseram que votariam ou poderiam votar no ex-juiz. Mas hoje nenhum dos candidatos dessa ala consegue personificar essa insatisfação. A seguir, os principais trechos da entrevista em que Sergio Moro também fala de economia, aborto, drogas e revela quem será seu alvo inicial nos primeiros meses de campanha.
Por que o senhor quer ser presidente? Precisamos romper essa polarização, que tem transformado os brasileiros e dividido as pessoas entre amigos e inimigos. Estamos todos no mesmo barco. Tenho a credibilidade construída durante minha carreira de juiz, especialmente na Operação Lava-Jato, em que conseguimos responsabilizar pessoas que tinham cometido grandes crimes de corrupção, e durante minha passagem pelo Ministério da Justiça, para onde entrei a fim de realizar um projeto e de onde saí porque vi que havia sabotagem do presidente. Isso demonstra minha integridade e meu compromisso com princípios e valores que são importantes para construir um projeto para o Brasil. Infelizmente, não vejo nas candidaturas de extremos uma proposta de país.
Por que os eleitores devem acreditar que sua candidatura é para valer? Esperei por uma candidatura que rompesse a escolha trágica entre Lula e Bolsonaro, mas ela não veio. Agora que apresentei meu nome e minha candidatura é a mais viável da terceira via, por que abrir mão dela? Não faz sentido eu desistir em prol de alguém que tem 1%, 2% ou 3%. Temos de respeitar todo mundo que quer colocar seu nome à disposição, mas é importante que em algum momento haja uma aglutinação em torno de um projeto e das pessoas que têm condições de realizá-lo. Hoje, vejo minha candidatura com as melhores chances de êxito.
Como é concorrer com um político que o senhor, como juiz, condenou por corrupção? É triste, constrangedor. O Brasil está retrocedendo. Infelizmente, temos uma Justiça muito formal, que acaba privilegiando as pessoas poderosas em detrimento da aplicação da lei. Todo mundo sabe que aconteceram os crimes na Petrobras, que a empresa foi saqueada por um projeto de enriquecimento ilícito de pessoas inescrupulosas e de financiamento ilegal de partidos políticos, entre eles o PT. Assistir às anulações de condenações como as de Sérgio Cabral, Eduardo Cunha e Lula é desalentador. Não é essa ideia de justiça que os brasileiros querem.
As maiores críticas sobre a sua atuação como juiz partiram de alguns ministros do Supremo Tribunal Federal. Até gente que confessou crimes tem tido condenações anuladas pelo STF. As pessoas precisam saber que a lei vale para todos, mas o Supremo, com essas decisões, reacendeu a crença de que não se pode confiar na Justiça para punir poderosos. As pessoas sabem quem está do lado certo dessa história, quem combateu a corrupção, quem cometeu corrupção e quem favoreceu a corrupção. Prova disso é que eu posso sair às ruas com tranquilidade, mas tem corrupto com condenação anulada e magistrado que anulou essas condenações que não podem fazer isso nem aqui nem no exterior.
“O governo do PT foi baseado em modelos de corrupção. O retorno de Lula ao poder depois dos escândalos do mensalão e do petrolão seria um tapa na cara de todos os brasileiros. Seria dar aval à roubalheira, dizer à sociedade que se pode roubar à vontade”
Se for eleito, vai poder indicar o procurador-geral da República e o diretor-geral da Polícia Federal. Reeditar operações como a Lava-Jato faz parte dos planos? Hoje, os governantes não acham que combater a corrupção é prioritário. Se for eleito, as grandes operações policiais serão retomadas, garantindo independência e autonomia à Polícia Federal e ao Ministério Público, que já não são mais os mesmos da época da Lava-Jato. O poder infelizmente gera tentações e é preciso ter mecanismos formais para proteger as instituições. A lista tríplice para a escolha do procurador-geral da República é um mecanismo importante. Fixar um mandato para o diretor-geral da Polícia Federal também.
A pecha de traidor difundida pelos apoiadores do presidente Bolsonaro incomoda? Tem muita gente sendo enganada. O presidente mente ao falar que acabou a corrupção. Os mecanismos que levaram ao mensalão e ao petrolão voltaram com a aproximação com o Centrão e com a política fisiológica do toma lá dá cá. Bolsonaro não queria combater nada. Queria apenas se blindar, ficar longe do alcance da Justiça. Ele me disse que eu tinha de sair do governo porque não aceitava protegê-lo de investigações. Prefiro ser alvo de críticas injustas e até de mentiras a permanecer como cúmplice de coisa errada.
“Esperei por uma candidatura que rompesse a escolha trágica entre Lula e Bolsonaro, mas ela não veio. Agora que apresentei meu nome e minha candidatura é a mais viável da terceira via, por que abrir mão dela? Não faz sentido eu desistir em prol de alguém que tem 1%, 2%, 3%”
A economia, dizem as pesquisas, deve ser o fator definidor do voto a presidente em 2022. Qual o papel dela em sua plataforma de campanha? O ponto primário do nosso programa é a retomada do crescimento econômico porque isso gera emprego e renda e abre oportunidade para negócios. Temos de diminuir a inflação, propiciar a redução dos juros, recuperar a credibilidade fiscal do país, acelerar as privatizações. O mercado está se enganando se realmente acredita no Lula bonzinho do primeiro mandato. É uma ilusão. Um novo governo petista será desastroso. E do outro lado, você tem um governo errático, irracional e inconfiável, que enganou os eleitores ao prometer e não realizar as reformas de que o país precisa.
O senhor tem defendido uma reforma administrativa. É a favor de restringir a estabilidade do servidor público? Não parto do pressuposto de que o servidor público é o vilão da história, mas precisamos de meritocracia. Foi aprovada em 1998 a possibilidade de demissão por insuficiência de desempenho, mas isso nunca foi regulamentado. Demissão é o último remédio a ser aplicado, mas é preciso ter um mecanismo para aqueles que não respondem a contento.
O país está maduro para ampliar as hipóteses de aborto legal ou para descriminalizar o uso de drogas recreativas? Nosso projeto envolve a manutenção da legislação atual, que proíbe o aborto e o permite em caso de risco à vida da mãe e em casos de estupro. Tenho uma postura pessoal contra o aborto. Também sou contra o uso de drogas, inclusive para uso recreativo. Drogas geram um dano à saúde das pessoas e expõe nossas crianças e adolescentes. Sempre fui muito rigoroso contra grandes traficantes de drogas.
“Hoje, os governantes não acham que combater a corrupção é prioritário. Se for eleito, as grandes operações policiais serão retomadas, garantindo independência e autonomia à Polícia Federal e ao Ministério Público, que não são mais os mesmos da época da Lava-Jato”
Quem é o seu principal adversário nesta fase da campanha? O adversário principal no primeiro turno é o Bolsonaro. Quero dar às pessoas a alternativa de que não é preciso tratar quem pensa diferente como inimigo. As pessoas sabem que esse governo não tem compromisso com o combate à corrupção e que não funcionou na economia. Elas precisam de uma outra alternativa, inclusive para enfrentar o outro extremo, que é o Lula. Se insistirem na polarização vamos acabar entregando o poder ao Lula.
Qual seria a consequência desse cenário? O governo do PT foi baseado em modelos de corrupção. Ele poderia dar a volta por cima se reconhecesse os erros e crimes que praticou, mas como nega esses fatos, apesar das confissões de empreiteiras e da devolução de milhões de dólares, minha única conclusão é que ele quer repetir a história. Isso é inaceitável. O retorno de Lula ao poder depois dos escândalos do mensalão e do petrolão seria um acinte, um tapa na cara de todos os brasileiros. É a mesma coisa que falar para a sociedade que se pode roubar à vontade. Além disso, o PT tem a mesma vocação autoritária do bolsonarismo, e vai tentar manietar as instituições.
O senhor recusará algum tipo de apoio político na campanha? Não recusarei nenhum apoio incondicionado. O que não dá é um político apoiar e em troca exigir um ministério ou a Petrobras. Pela minha experiência é difícil ter um apoio incondicional, mas é preciso dialogar com as pessoas para ver que tipo de aliança podemos construir. Não dá para fazer uma aliança quando os projetos são diferentes. Não há possibilidade de diálogo com o Ciro Gomes, por exemplo.
Estima-se que a campanha presidencial será uma das mais virulentas da história. Isso preocupa? Sei que os ataques dirigidos a mim são baseados em mentiras, são coisas de quem não tem argumento para debater na campanha. Tenho casca grossa. Mas há também o risco de violência física. Estou tomando precauções contra atentados.
“O Supremo reacendeu a crença de que não se pode confiar na Justiça para punir poderosos. Prova disso é que eu saio às ruas com tranquilidade, mas tem corrupto com condenação anulada e magistrado que anulou essas condenações que não podem fazer isso nem aqui nem no exterior”
O TCU suspeita que o senhor enriqueceu ilegalmente após deixar o governo e ir trabalhar na iniciativa privada. Não sou milionário e nem fiquei milionário na carreira privada. Nunca prestei nenhum serviço — e isso estava proibido no meu contrato com a consultoria — a empresas vinculadas à Operação Lava-Jato. Quem divulga isso mente. O TCU tem responsabilidade de fazer controle sobre a administração pública e devia se focar nisso, porque há muito a ser feito.
O senhor poderia dizer quanto ganhou como consultor depois que deixou o Ministério da Justiça? Não revelo o valor do contrato por ser uma relação privada. O tribunal tem uma atuação indevida e ilegal nesse caso e vai quebrar a cara porque não tem nada de errado na minha relação privada com a consultoria que me empregou. Repito: não enriqueci nem como juiz nem como ministro. Meu trabalho na iniciativa privada era ajudar as empresas a prevenir casos de suborno. Minha carreira privada de certa maneira é uma continuidade da minha vida pública, de combate à corrupção e em prol da integridade. Tudo será declarado no seu devido tempo e lugar.
“O mercado está se enganando se realmente acredita no Lula bonzinho do primeiro mandato. É uma ilusão. Um novo governo petista será desastroso. E do outro lado você tem um governo errático, irracional e inconfiável, que enganou os eleitores ao prometer e não realizar as reformas de que o país precisa”
O senhor sempre disse que não reconhecia o teor das mensagens que trocou com procuradores da Lava-Jato e que mostram uma relação, no mínimo, conivente entre juiz e acusação. Não é o caso de fazer um mea-culpa? As pessoas vêm criticar a mim e ao Deltan (Dallagnol, então chefe da Lava-Jato em Curitiba), mas sobre o pessoal que mandou anular tudo, sobre o Congresso que reviu as leis e sobre o Bolsonaro, que desmantelou o combate à corrupção, ninguém fala nada? Não existe nada naquelas mensagens de alguém que tenha sido condenado e era inocente, não teve fabricação de provas, não teve nada ali que justificasse a anulação das condenações. O que acontece é a velha história de que rico e poderoso nunca vai para a prisão. Desta vez usaram essas mensagens como álibi para impunidade.
Por que grande parte das críticas à Lava-Jato vem de advogados? Há um grupo de advogados, como esse Prerrogativas, trabalhando pela impunidade de corruptos. Esses mesmos advogados se arvoram de alguma espécie de ética, de alguma espécie de superioridade moral em relação ao Ministério Público e em relação aos juízes que participaram desses casos. No fundo a vergonha está neles.
Na condição de eleitor, em quem o senhor votaria num eventual segundo turno entre Lula e Bolsonaro? O Brasil não corre o risco de ter essa escolha trágica. Eleger Lula ou Bolsonaro é suicídio.
Publicado em VEJA de 19 de janeiro de 2022, edição nº 2772