Reza o mantra que Lula é maior do que o PT. Se o partido avança, o mérito é do presidente da República. Se fracassa, a culpa é única e exclusiva de seus integrantes, com exceção, claro, do líder infalível. Empregada desde a ascensão da legenda ao poder, em 2003, essa lógica foi usada por Lula, ministros e líderes aliados ao analisar o resultado do primeiro turno da eleição municipal deste ano, no qual a esquerda saiu derrotada — e o Centrão, a direita e o conservadorismo, fortalecidos. Na manhã seguinte à votação, o núcleo duro do governo, em reunião no Palácio do Planalto, circunscreveu o revés ao PT, reclamando do fato de a sigla não ter aproveitado o crescimento da economia e a retomada de programas sociais, na atual gestão, para ter sucesso nas urnas. Em contraposição, o presidente e auxiliares fizeram um balanço positivo para o governo, que, com a ajuda de aliados no plano federal, teria derrotado candidatos simbólicos da extrema direita, como Alexandre Ramagem, no Rio de Janeiro, e Gilson Machado, no Recife, ambos apadrinhados por Jair Bolsonaro.
Após a reunião, houve até uma tentativa de comemoração. “Nós estamos confiantes de que existem vitórias simbólicas importantes de uma frente ampla apoiada pelo presidente Lula contra candidaturas da extrema direita, que tenta perverter o processo democrático brasileiro”, declarou o ministro de Relações Institucionais, Alexandre Padilha. O presidente tem uma maneira peculiar de lidar com a realidade e costuma tentar reescrever a história. O mensalão e o petrolão, segundo ele, jamais existiram. Já a Venezuela não vive sob uma ditadura, mas num regime “desagradável”. O problema para Lula é que o placar da votação não deixa dúvida: a direita e o conservadorismo ganharam terreno, enquanto a esquerda e o PT ficaram para trás na disputa pelas prefeituras e câmaras municipais. Até 2026, muita coisa pode mudar. O resultado num pleito municipal não tem necessariamente relação direta com o de uma eleição geral, mas não há como negar que, por enquanto, os ventos sopram numa direção contrária à sonhada pelo mandatário.
Principal expoente da esquerda no país, o PT sente como poucos os efeitos desse vendaval. No primeiro turno, conquistou 248 municípios e ficou na nona colocação entre os partidos que mais ganharam prefeituras. Em público, o resultado foi comemorado como um sinal da recuperação da legenda, que havia vencido em apenas 183 cidades em 2020. Nos bastidores, no entanto, petistas reconheceram a frustração. Basta lembrar que o PT tem a seu favor o peso da máquina federal, capaz de desequilibrar qualquer disputa eleitoral. Basta lembrar também o desempenho em pleitos anteriores nos quais a legenda estava no poder. Na eleição municipal de 2004, disputada no primeiro mandato de Lula, o PT mais do que dobrou o número de prefeituras e venceu em seis capitais no primeiro turno. Em 2012, no mandato inicial de Dilma Rousseff, ganhou em 635 cidades, incluindo São Paulo. Neste ano, as vitórias se concentraram em municípios pequenos, e as mais festejadas ocorreram em Contagem e Juiz de Fora, ambas em Minas Gerais.
Além da carência numérica, houve derrotas simbólicas importantes. Na reunião de avaliação no Planalto, o próprio Lula acusou o golpe do fracasso em Araraquara, onde o prefeito petista Edinho Silva — cotado para substituir a deputada Gleisi Hoffmann no comando do partido — não conseguiu eleger a sucessora, que acabou superada por um nome apoiado pela família Bolsonaro. A gestão de Edinho tem cerca de 70% de aprovação, mas não resistiu ao embate direto com o bolsonarismo. Outros quadros estrelados, como Emidio de Souza, ex-chefe do PT-SP e amigo de Lula, também fracassaram. No segundo turno, o PT concorrerá em treze cidades, incluindo quatro capitais, nas quais não desponta como favorito. “Hoje, a esquerda não é mais uma posição majoritária no Brasil. É minoria. Por isso, o PT depende cada vez mais de alianças com partidos mais ao centro”, diz o deputado federal petista Rogério Correia, que ficou em sexto lugar na disputa pela prefeitura de Belo Horizonte. “Esperava um desempenho melhor do partido. O PT tem que falar com os antagônicos. Essa coisa de falar só com os mesmos não dá”, acrescenta o senador Fabiano Contarato (PT-ES), que viu um correligionário ser derrotado na capital capixaba ainda no primeiro turno.
Algumas razões para a desidratação petista são conhecidas. Nos últimos dez anos, o partido enfrentou um poderoso processo de desgaste em decorrência da Operação Lava-Jato, que desvendou o maior esquema de corrupção já descoberto no país, e da recessão histórica legada por Dilma Rousseff. Na nota da Comissão Executiva Nacional do PT sobre as eleições municipais, a legenda reconhece o peso desses fatores, mas, como de costume, omite os próprios erros e se apresenta como vítima de conspiração. “Esta avaliação tem de levar em conta que voltamos ao governo após quase uma década de cerco e perseguição contra nosso partido e nosso maior líder. O período histórico inaugurado com a farsa da Lava-Jato e o golpe contra a presidenta Dilma abriu as portas para a extrema direita aliada ao neoliberalismo mais selvagem, que seguem ameaçando o país e o sistema democrático”, diz o texto.
Por mais que tente negar, Lula também tem responsabilidade direta pelo desempenho municipal da legenda. De olho na eleição de 2026, o presidente determinou ao partido que abrisse mão de candidaturas em grandes colégios eleitorais e apoiasse concorrentes de siglas aliadas, na expectativa de que estas, daqui a dois anos, embarcassem na sua campanha à reeleição. Essa articulação rendeu frutos em capitais como Rio de Janeiro e Recife, que reelegeram os prefeitos Eduardo Paes (PSD) e João Campos (PSB), os quais foram apoiados pelo PT, mas não cederam a vaga de vice ao partido. O mesmo tipo de articulação enfrentará um teste de fogo no segundo turno, quando nomes avalizados por Lula — filiados ou não ao PT — terão confrontos diretos com concorrentes da cota pessoal de Bolsonaro em Belo Horizonte, Fortaleza, Belém e Cuiabá. Ao contrário do que imaginava antes do início da campanha, o presidente não teve protagonismo até agora na eleição municipal nem se mostrou um cabo eleitoral tão poderoso como foi no passado. Mesmo na estratégica eleição de São Paulo, em que apoia Guilherme Boulos (PSOL) contra Ricardo Nunes (MDB), Lula desempenhou papel periférico — por medo da derrota já no primeiro turno, segundo adversários e até alguns aliados.
No segundo turno, Lula, até numa tentativa de remediar a situação, pretende reservar dois finais de semana para a campanha paulistana e fará eventos oficiais do governo em Fortaleza, Belém e Porto Alegre, onde a deputada Maria do Rosário tenta impedir a reeleição de Sebastião Melo (MDB). “Será muito positivo para o governo se ganharmos os confrontos diretos nas quatro capitais contra o bolsonarismo. O PT não aproveitou a eleição do Lula e os quase dois anos de governo, com retomada do crescimento econômico e das políticas sociais, para obter um crescimento mais expressivo”, diz um ministro, tentando dissociar a derrota do partido da figura de seu líder maior. O fato é que o presidente também não conseguiu aproveitar os ativos citados.
Pesquisa Genial/Quaest mostrou que a aprovação ao trabalho de Lula caiu de 54% para 51% entre julho e setembro, e a avaliação positiva de seu governo baixou de 36% para 32%, ficando empatada com a negativa (31%). Outro levantamento, divulgado pelo Ipec no mês passado, revelou que para 58% dos entrevistados o presidente não deveria se candidatar à reeleição, enquanto 39% responderam o contrário. Mesmo petistas, sobretudo aqueles que não são habitués dos palácios, admitem que a esquerda está cada vez mais desconectada da realidade e insiste em pautas que não dialogam com as prioridades da população, enquanto a direita empunha bandeiras com alta capacidade de mobilização, como na área da segurança pública. “Há um esgotamento das ações dos governos de esquerda, que não respondem mais ao novo desenho da sociedade, baseado principalmente no empreendedorismo, no individualismo e na meritocracia. A direita percebeu essa mudança e conseguiu estabelecer diálogo com essas pessoas à luz desse novo desenho social”, diz Paulo Baía, professor de ciência política da Universidade Federal do Rio de Janeiro.
A votação municipal, de fato, ampliou o leque na direita. Um dos principais vitoriosos no primeiro turno foi o governador de São Paulo, Tarcísio Gomes de Freitas, que bancou a candidatura do prefeito Ricardo Nunes em São Paulo mesmo quando ela sofria com o assédio de Pablo Marçal, a desconfiança de Bolsonaro e a contestação dos eleitores mais radicais. Desde o ano passado, com a inelegibilidade do ex-presidente, Tarcísio é cortejado para concorrer ao Planalto. Esse assédio tende a se intensificar com o fortalecimento dos partidos do Centrão e da direita nos municípios e, principalmente, caso Lula perca popularidade. Outro vitorioso no domingo, o comandante do PSD, Gilberto Kassab, que é secretário de Governo de Tarcísio, já deixou claro que, apesar de a sigla comandar três ministérios de Lula, não há compromisso com o projeto de reeleição do presidente. O MDB, o União Brasil e o Republicanos, que também são da tal frente ampla que Lula diz ter derrotado nomes da extrema direita, têm posições semelhantes à do PSD e não estão amarrados a uma eventual candidatura presidencial do PT, que acusam de sempre controlar os melhores espaços da máquina federal, deixando pastas secundárias para os aliados.
Desde que assumiu seu terceiro mandato, Lula nunca afirmou que disputará um novo pleito. Ele já deixou escapar que poderá concorrer se for necessário para evitar a volta “dos fascistas ao poder”. Seus assessores dizem que a candidatura dele é líquida e certa, apesar de o mandatário estimular a disputa interna entre os ministros da Fazenda, Fernando Haddad, e da Casa Civil, Rui Costa, pelo posto de sucessor nas urnas. Em sua cruzada quase solitária para equilibrar as contas públicas, Haddad não participou da eleição municipal. Já Rui Costa, ex-governador da Bahia, fugiu da derrotada coligação MDB-PT em Salvador e percorreu o estado para ajudar seus candidatos preferidos. Fez carreata, passeata e colheu derrotas significativas em Feira de Santana e Ilhéus, entre outros. Segundo um auxiliar próximo ao presidente, os dois ministros se movimentam, mas o candidato em 2026 será Lula.
Ecoando o otimismo do chefe, o auxiliar diz que a aprovação do presidente subirá nos próximos dois anos, como resultado de esforços que estão sendo empregados para melhorar a comunicação do governo e equilibrar a disputa com a direita nas redes sociais. Essas medidas são fundamentais, mas não resolvem a questão de fundo: o que comunicar, que pautas defender e o que propor ao eleitorado. Por enquanto, ainda não há respostas. Alarmada com os índices de criminalidade e violência urbana, a população espera até agora da gestão Lula um prometido plano de segurança pública. Quando será apresentado? “Não acredito que a gente vá conseguir produzir uma política eficiente para a área”, admite um ministro que pediu para não ser identificado. Como sempre fez, Lula aposta que renovará o mandato embalado por crescimento econômico e programas sociais. Pode até dar certo, mas as pesquisas, os especialistas e as eleições municipais sugerem novos tempos na política. Receitas ultrapassadas, como ventos passados, não movem moinhos.
Colaboraram Hugo Marques e Ricardo Chapola
Publicado em VEJA de 11 de outubro de 2024, edição nº 2914