O deputado Hugo Leal (PSD-RJ) ganhou projeção nacional em 2008 como autor do projeto que criou a chamada Lei Seca, que pune com prisão motoristas que dirigem sob efeito de álcool ou drogas. Antes disso, era um político praticamente anônimo. Sua carreira foi construída no Rio de Janeiro, onde foi secretário nos governos de Anthony e Rosinha Garotinho. Advogado e economista, ele também era muito próximo a Eduardo Cunha, ex-presidente da Câmara, com quem trabalhou durante anos em seu estado e em Brasília. Esse conjunto de experiências, por enquanto, ainda não foi suficiente para o parlamentar alçar voos mais altos, mas certamente lhe garantiu a expertise necessária para assumir uma função de altíssima complexidade: a posição de relator-geral do Orçamento. Nesse poderoso posto, caberá a ele indicar no próximo ano o destino de 16 bilhões de reais que os congressistas enviarão às suas bases eleitorais — uma fonte histórica de monumentais escândalos.
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Na semana passada, por exemplo, a Polícia Federal fez buscas em endereços do deputado Josimar Maranhãozinho (PL-MA). Descobriu-se que o parlamentar desviou 15 milhões de reais a vários municípios de seu estado para financiar obras. Até esse ponto, nada ilegal. Parlamentares têm a prerrogativa de destinar recursos para suas bases via emendas individuais, de bancada ou via pedidos feitos ao relator do Orçamento. As investigações sobre Maranhãozinho, porém, revelaram que, tão logo os recursos eram liberados, a prefeitura beneficiada contratava para executar o serviço uma empresa indicada pelo próprio deputado. Em suma, o dinheiro migrava dos cofres públicos para o bolso do parlamentar. Em um dos escritórios do congressista, os agentes apreenderam caixas abarrotadas de dinheiro. O golpe de Maranhãozinho foi aplicado no Orçamento de 2020. Hugo Leal, que assumiu o posto de relator-geral do Orçamento de 2022, nada tem a ver com isso — mas pode ter problemas se tramoias como essa se repetirem em 2022, o que não é improvável.
Em 2019, deputados e senadores aprovaram uma regra que dá ao relator dessa comissão poderes para remanejar parte do Orçamento e destinar verbas para onde ele bem entender. A mudança, em tese, foi realizada para tentar blindar os parlamentares de pressões políticas. Os congressistas encaminham seus pleitos diretamente ao relator, que fica responsável pela formalização do pedido junto ao governo federal. As “emendas do relator”, dessa forma, chegam aos órgãos de governo sem a identidade do parlamentar que as solicitou, supostamente impedindo que a liberação dos recursos se desse por critérios meramente casuísticos, privilegiando os aliados. Essa metodologia produziu o que se convencionou chamar de “orçamento secreto” e a desconfiança é de que esse sigilo, na verdade, tenha objetivos pouco ou nada nobres, como dificultar que casos como o do deputado Maranhãozinho sejam rapidamente identificados.
Para 2022, ano eleitoral, Hugo Leal será o responsável pelo encaminhamento das “emendas do relator” — um superpoder bilionário que garante ao político fluminense um nível de importância e influência só comparável ao de figurões como o presidente da Câmara e o presidente do Senado. Para perceber o que isso significa, basta passar alguns minutos em frente ao gabinete. O ritmo de pessoas entrando e saindo é frenético. Parlamentares, servidores, técnicos, lobistas e empresários chegam a fazer fila para tratar dos últimos ajustes da peça que deverá ser votada até o fim da próxima semana, quando termina o ano legislativo. Leal tem passado a maior parte de seu tempo entre audiências com os colegas e reuniões com ministros do governo. Afinal, a liberação no ano que vem de uma verba para a construção de uma ponte, uma quadra de esporte ou de um posto de saúde pode definir uma eleição. Da mesma forma que, em contrapartida, a aprovação de um projeto de interesse do governo pode mudar o rumo da sucessão presidencial. Essa negociação faz do relator do Orçamento um personagem ímpar.
Expoente do Centrão, Hugo Leal, de acordo com seus pares, tem o perfil ideal para a tarefa. O relator está em seu quarto mandato na Câmara dos Deputados. O PSD é o seu quinto partido político. Influente no Rio de Janeiro, Leal abriu as portas da política para o atual governador do Estado, Cláudio Castro (PL), que foi seu assessor de gabinete. A habilidade com o Orçamento também faz parte de sua trajetória. Por dez anos, foi coordenador da bancada do Rio na Câmara, tendo como uma de suas atribuições justamente negociar a distribuição das emendas com os colegas. Ele ainda atuou por três vezes como sub-relator na CMO.
Outra característica do parlamentar é a gravitação em torno do governante do momento — e um rápido afastamento, caso seja necessário. Leal foi vice-líder do governo Dilma Rousseff, o que não o impediu de votar a favor do impeachment. Em 2017, também votou a favor da abertura de investigação sobre o ex-presidente Michel Temer (MDB), de quem se diz amigo pessoal. Sobre Bolsonaro, diz que mantém boa relação com ele, tendo sido colega de bancada quando esteve no PL. “Minha relação com o presidente sempre foi pessoal e institucional. Ele me conhece, quando nos encontramos, ele brinca, fala muita coisa. Gosto de repetir que ele chegou aonde chegou por mérito”, diz o deputado, que também explica como ele, Hugo Leal, chegou aonde chegou: “A experiência provavelmente fez com que meu nome surgisse com naturalidade para o cargo”, diz. Não foi tão natural assim. O PSD só ganhou o direito a indicar o ocupante do cargo depois de garantir o apoio do partido ao deputado Arthur Lira na disputa pela presidência da Casa.
Nesse universo de interesses difusos que rondam o Orçamento, o relator acaba de alguma forma se transformando em testemunha de engenhosas estratégias político-financeiras e, evidentemente, guardião de certos segredos. Reza a lenda, por exemplo, que o senador Rodrigo Pacheco, então aliado do governo Bolsonaro, só se elegeu presidente do Congresso no início deste ano graças a uma bem-sucedida negociação que envolveu a liberação de verbas milionárias aos parlamentares que votaram a favor dele. As “emendas do relator” impedem que se descubra se, de fato, houve alguma relação direta entre voto e liberação de verba. A suspeita que esse “segredo” na verdade serve para atender a interesses pouco ou nada republicanos levou o Supremo Tribunal Federal (STF) a suspender a liberação das emendas, mas a decisão acabou revogada.
Especialistas concordam que as “emendas do relator” dificultam a fiscalização de órgãos de controle e permitem que o governo continue pressionando eventuais adversários ou compensando aliados que votam a favor dos projetos de seu interesse. Recentemente, o senador Davi Alcolumbre (DEM-AP), um ex-aliado do presidente da República, decidiu criar obstáculos para tentar inviabilizar a nomeação do advogado André Mendonça para o STF. Não tardou muito para circular uma planilha mostrando que o senador foi beneficiário de 1,1 bilhão de reais em “emendas do relator” no Orçamento de 2020. Um mês depois, os obstáculos sumiram e o nome de Mendonça foi aprovado. Pode ter sido apenas coincidência.
Publicado em VEJA de 15 de dezembro de 2021, edição nº 2768