Após meses de negociações, o governo Lula oficializou na última semana a entrega de dois ministérios ao PP e ao Republicanos, partidos que até o ano passado caminhavam ao lado de Jair Bolsonaro. Mesmo com o ingresso no primeiro escalão, as cúpulas das legendas dizem que ficarão independentes e não vão ingressar formalmente na base governista. Para Timothy J. Power, decano de Ciências Sociais na Universidade de Oxford e estudioso da política brasileira, apesar da dança das cadeiras, o Palácio do Planalto terá de travar novas negociações com as legendas a cada votação importante no Congresso.
“O compromisso dos partidos que estão nominalmente na coalizão com o Lula é menor do que era 15 ou 20 anos atrás. Ou seja, os aliados são menos confiáveis hoje e os líderes partidários têm menos controle sobre eles. Na prática, à época de Fernando Henrique Cardoso ou de Lula 1 e 2, chamar um ministro era dizer que você também trazia o partido para o bloco governista na Câmara. Hoje, você não pode falar que isso é certo”, afirma.
Em entrevista concedida a VEJA por videoconferência, Timothy Power também fala sobre o que está em jogo nas negociações ministeriais, o que um político ganha ao ocupar a Esplanada e o peso de ter quatro presidenciáveis no alto escalão governista. Confira abaixo.
É possível mensurar o que um político ganha ao virar ministro? Sim, é possível. Primeiro, devo dizer que há diferenças entre os ganhos obtidos pelos partidos e pelos indivíduos, os políticos. Os partidos querem emplacar um nome porque imaginam que o ministro vai direcionar recursos federais para as siglas, então a legenda tem uma missão mais coletiva e faz negociações com o Palácio para emplacar nomes basicamente por motivos de distribuição de recursos. Mas, para os indivíduos, o cálculo é um pouco diferente, porque tem a ver com a ambição política da pessoa. O que a gente vê é que entrar no ministério é um maravilhoso trampolim para qualquer político, porque é um atalho para cargos mais importantes.
Quais são os casos de ‘atalhos’ bem-sucedidos? Há vários exemplos de pessoas que basicamente fizeram suas carreiras em cargos indicados. A Dilma Rousseff, por exemplo, foi secretária estadual, ministra e depois presidente. O Fernando Haddad foi ministro antes de ser prefeito. O caminho recente mais típico é você virar ministro e depois vai conquistar um mandato. Nas eleições do ano passado, cinco ministros de Jair Bolsonaro foram diretamente para o Senado. Se pensar que em 2022 houve apenas uma vaga de senador disponível para cada estado, e em cinco venceram um ministro do governo da época, é uma coisa impressionante. Então, qualquer indivíduo, a nível municipal, estadual ou federal, vai querer uma vaga para lançar ou para encurtar aquela escada política. A grande maioria das pessoas que tenta a carreira política como candidato a deputado perde, 98% não vão para frente. Mas quem tem uma indicação para secretário ou ministro têm uma visibilidade garantida.
Como essa visibilidade é conquistada? Em muitos países a gente pensa em ministérios em termos reputacionais, de prestígio. Mas, no Brasil, é mais um cargo de recursos e de visibilidade. Na maioria dos países europeus, a segunda vaga do governo normalmente é a de ministro das Relações Exteriores. Nos Estados Unidos, o secretário de Estado é o cargo mais importante, mais visível. Mas, na nossa pesquisa feita para medir o valor de um ministério para um partido político, o das Relações Exteriores não ficou nem entre os dez primeiros cobiçados no Brasil. Não controla muitos recursos, não tem visibilidade e não entrega obras. O que ficou em primeiro lugar, e eu não imaginava que seria assim, foi o Ministério das Cidades, o mais valioso pelos partidos justamente pelo motivo de entrega de obras e de firmar convênios com mais de 5 mil municípios para construir casas. O Minha Casa, Minha Vida tornou aquele ministério muito desejável. Quando foi criado por Lula, foi para abrigar o Olívio Dutra no ministério. Era visto como aqueles ministérios da Pesca, um cabide de emprego para político derrotado.
O eleitor sabe diferenciar o peso de ser um parlamentar ou o de ser ministro? Acho que ele entende de maneira superficial, porque normalmente o candidato vai usar uma foto dele com o presidente e dizer que foi ministro. É um atalho psicológico para o eleitor, que pensa: ‘Eu não conheço esse cara, mas eu sei que ele estava toda quarta-feira na foto do ministério com o presidente. Eu gosto do presidente, então vou votar nesse candidato’. É uma maneira de reduzir os custos informacionais do eleitor. Mas também acho que não precisa haver uma relação direta entre o eleitor e o ministro candidato, porque há muitas pessoas intermediárias que vão ajudar nessa eleição. O ministro das Cidades entrega casas, recursos e tem um monte de deputado estadual que vai trabalhar em favor dele, tem um monte de prefeito. Acho que o valor do ministério não é só a visibilidade com o eleitor, mas a troca de favores com políticos que ocupam cargos intermediários. São políticos que têm raízes mais seguras nas comunidades, como prefeitos, vereadores e secretários estaduais.
No cálculo sobre o valor de um ministério, como é avaliada a relação empresarial? É importante ter em mente que não necessariamente o ministro quer continuar na política. Às vezes ele ganha um status que pode render poder. Tem ministros mais técnicos que não têm tanta ambição eleitoral. A maioria tem essa ambição eleitoral, mas há também aqueles vão fazer uma passagem no governo e depois vão trabalhar num banco, numa empresa. Eles são minoria, e normalmente os partidos não se interessam muito nesses nomes, porque sabem que não vão ter um retorno muito grande. Normalmente, são pessoas que entram no ministério na cota presidencial, e não na cota partidária.
Há quatro ministros da cota presidencial [Flávio Dino, Rui Costa, Geraldo Alckmin e Fernando Haddad] que são tidos como presidenciáveis. Essa pretensão gera algum problema interno? Dois desses nomes são do PT, são homens partidários e têm carreiras longas dentro do partido. O Haddad já pagou tantos preços, já foi sacrificado tantas vezes no altar para o PT, em termos de perder várias eleições em nome da legenda. Qualquer presidente precisa desses quatro nomes e não convidá-los para um ministério seria muito difícil, foram governadores e têm experiência. Penso também que o Dino, apesar de não ser do PT, é um aliado natural. O Lula tem um poder discricionário sobre o PT que é muito mais elevado do que outros políticos brasileiros. Ele preside o partido há mais de 40 anos, não existe outro partido no ocidente que tem um líder que está aí esse tempo. Eles não vão criar dificuldades para o Lula. No último ano, o presidente vai ter que sinalizar o que vai fazer, e só neste momento eles vão lançar seus nomes. O típico problema de um presidente é um ministro que sai e vira candidato. Mas isso não vai acontecer, são nomes confiáveis.
A característica do Brasil de distribuição de ministérios é uma prática que transcende presidentes. Há alguma diferença entre os governantes? Acho que é algo mais ao menos consistente ao longo do tempo. O que muda não são os incentivos, e sim a natureza da coalizão. Você tem coalizões mais homogêneas ou heterogêneas. Por exemplo, o Fernando Henrique tinha uma coalizão mais homogênea de centro-direita. O PT tem uma coalizão mais heterogênea que traz políticas de todas as ideologias praticamente, salvo a extrema direita. Então, não mudam os incentivos. O que muda é a diversidade de nomes que aparecem. O Lula vai aumentando o número de ministérios praticamente para abrigar novos postos no Congresso Nacional porque o tamanho da coalizão é menor do que ele tinha nos últimos dois mandatos dele. Se fizermos um cálculo sobre o número de ministérios e o de cadeiras na Câmara, será perceptível a precariedade do governo Lula. Ele está com uma coalizão reduzida, de menos de 300 cadeiras, e chegando a 38 ministérios. Então, o valor de um ministério em comprar votos e comprar cadeira é muito reduzido para o Lula 3 do que era no Lula 1 e 2. Ou seja, ele está aumentando o tamanho do gabinete e do ministério com pouco retorno.
Isso significa, na prática, que a reforma ministerial não entregará todos os votos? O compromisso dos partidos que estão nominalmente na coalizão com o Lula é menor do que era 15 ou 20 anos atrás. Ou seja, os aliados são menos confiáveis hoje e os líderes partidários têm menos controle sobre eles. Na prática, à época de FHC ou de Lula 1 e 2, chamar um ministro era dizer que você também trazia o partido para o bloco governista na Câmara. Hoje, você não pode falar que isso é certo. Como toda a controvérsia sobre a ministra do Turismo mostrou, emplacar um ministro não quer dizer que você está comprometido com o governo. Então, os partidos hoje engajam mais em chantagem do que há 20 anos. Eles conhecem como explorar o sistema de presidencialismo de coalizão.
O que mudou em relação aos mandatos anteriores? Os políticos aprenderam que esperando e negociando eles têm boas chances de conseguir uma entrada no ministério. É só esperar vacilar um pouco que você vai receber uma oferta melhor. Os incentivos para o indivíduo e para o partido são muitas vezes desalinhados. A pessoa quer entrar no ministério, o partido não pode proibir que a pessoa entre, então é um bloco garantido. Tem bons exemplos de presidentes que nomeiam pessoas da própria oposição para cargos ministeriais. No primeiro ano de Fernando Collor, por exemplo, o PMDB fazia uma oposição ferrenha ao governo e o Collor tinha ministros do partido.
O PP e o Republicanos, apesar de terem ganhado ministérios, dizem manter a posição de independência. Eles querem o melhor dos mundos: fazer parte do ministério, mas sem se comprometer a entregar votos na Câmara. Então tem dois tipos de negociação: uma para entrar no gabinete, mas, como não se promete apoiar o governo de modo consistente, a cada votação importante na Câmara terá uma outra negociação. Os partidos são chantagistas profissionais, o presidencialismo de coalizão está funcionando assim desde 1995, então as legendas já aprenderam as regras do jogo e que entrar 100% no governo só acontecerá com os partidos mais ideologicamente alinhados. Os outros vão ter restrições de negociações permanentes.
Com o critério de distribuição de ministérios sendo político, como fica o interesse público? Conhecendo as regras do presidencialismo de coalizão, as regras informais de troca de favoreces entre partidos e presidentes, a gente não deveria esperar um alto nível de conhecimento técnico. Não seria nem natural esperar isso. A única coisa que acontece é que às vezes os presidentes mandam recados de que determinado ministério é dele e ficará protegido ao longo de quatro anos. Por exemplo, entre 1995 e 2014 o Brasil só teve três ministros da Fazenda. Isso quer dizer que a pasta estava sendo protegida do jogo do presidencialismo de coalizão. Mas essa sinalização tem que ser forte e tem que ser logo no primeiro dia do mandato. Porque se o presidente vacilar, tudo vai ser negociado e depois se perde conhecimento técnico nos ministérios que mais precisam de conhecimento.
O senhor vê alguma necessidade de mudança do sistema político? Considera que o presidencialismo de coalizão começa a ficar ultrapassado? Em um sistema partidário tão fragmentado como o brasileiro, não vejo outra solução ao formato atual. É o pior de todos os sistemas, mas é o sistema que o Brasil está condenado a praticar. Porque um presidente, sendo eleito com 10% dos votos da Câmara, tem que chegar aos 60% dos votos. Então, ele tem de conversar. E a ferramenta mais forte que tem é abrir o ministério para outros partidos. A arma mais natural é compartilhar o poder Executivo. Então, não vejo alternativa. O que estou dizendo é que ao longo do tempo os partidos adaptaram a sua estratégia obedecendo uma lei de consequências antecipadas. Eles sabem o que os presidentes vão fazer, eles sabem que chegando a setembro do primeiro ano de Lula vai ter uma reforma ministerial e o número de ministérios não vai reduzir, vai aumentar. Isso é muito previsível.