Ranking avalia atuação de políticos num Congresso mais poderoso que nunca
A renovação recorde gerou a expectativa de mais eficiência. Apesar da aprovação de medidas importantes, o resultado do trabalho dos parlamentares decepciona
Dos 513 deputados federais eleitos em outubro de 2018, quase metade (47,4%) nunca tinha pisado no Congresso Nacional na condição de parlamentar. O índice recorde de renovação ocorreu em um momento de descrédito do mundo político, potencializado pela Operação Lava-Jato, que produziu a onda que levou ao Palácio do Planalto o capitão do Exército Jair Bolsonaro — por ironia, um deputado de baixo clero, com sete mandatos consecutivos, que nunca produziu nada digno de nota nesse longo período. De qualquer forma, aqueles políticos, ungidos pelo sentimento de mudança nas urnas, produziram com seus novos rostos e ideias a expectativa de uma legislatura igualmente renovadora e transformadora. A fotografia tirada ao final do mandato, no entanto, retrata algo diferente, repetindo a tradição nacional de a chamada “Casa do Povo” oscilar muito entre acertos e retrocessos. Considerando-se o contexto em que a maioria chegou ao local, é inegável o sabor de frustração.
Na análise dos trabalhos realizados nos últimos três anos e meio, ainda que aos trancos e barrancos, é verdade que o Congresso teve o mérito de aprovar medidas importantes. Enquanto atuaram em bloco, os deputados conseguiram aprovar projetos fundamentais como a reforma da Previdência, a independência do Banco Central, a privatização da Eletrobras e os marcos legais de gás e saneamento básico (veja o quadro acima). Em todos esses casos, as iniciativas tiveram o apoio do Executivo, mas propostas polêmicas como a venda de uma estatal relevante ou mudanças no sistema de aposentadorias não teriam tramitação fácil no Legislativo se não houvesse a articulação cuidadosa e persistente de algumas de suas lideranças. Ao mesmo tempo, porém, os parlamentares falharam ao não conseguir levar adiante outras prioridades nacionais, como as reformas tributária e administrativa.
Se o trabalho em grupo produziu alguns resultados relevantes, o mesmo não pode ser dito da atuação individual dos parlamentares. Segundo um mapeamento recente feito pela plataforma Legisla Brasil, quase oito em cada dez deputados (77%) tiveram desempenho fraco ou mediano quando foram analisados os seus trabalhos com base em quatro indicadores: produção legislativa (e relevância dos projetos), fiscalização, mobilização e alinhamento partidário. Dos 513 deputados, apenas 57 foram considerados cinco-estrelas (com notas gerais maiores de 5,3, em uma escala de 0 a 10). “A nota média dos deputados é muito baixa, assim como a produtividade individual foi baixa, porém o Congresso desde 2019 foi mais atuante em alguns pontos, como durante a pandemia, em que tomou a frente de várias medidas”, afirma Luciana Elmais, uma das idealizadoras do estudo.
O Índice Legisla Brasil não é o primeiro a fazer esse tipo de estudo, mas, ao contrário de outros, como o Ranking dos Políticos (de viés liberal) e o Diap (ligado a sindicatos de trabalhadores), busca fazer a avaliação sem filtro ideológico. Tanto que a lista de cinco-estrelas tem políticos de orientações distintas, como Alexandre Padilha (PT-SP), Kim Kataguiri (União-SP), Paula Belmonte (Cidadania-DF), Tabata Amaral (PSB-SP) e Capitão Alberto Neto (PL-AM). Infelizmente, porém, conforme mostra o trabalho do Legisla Brasil, eles são exceções. Na ponta mais baixa do ranking figuram parlamentares “duas-estrelas”, a exemplo de Aécio Neves (PSDB-MG) e Marco Feliciano (PL-SP).
Há vários fatores que explicam a aparente contradição entre parlamentares ineficientes e, no conjunto, um Congresso com momentos de brilho, como quando foi capaz de levar adiante uma robusta reforma da Previdência, algo que as antigas legislaturas fracassaram ao longo de décadas. Uma das principais razões da baixa performance foi justamente a falta de experiência da maioria, que chegou à “Casa do Povo” sem ter noção alguma do funcionamento do Congresso e do que é necessário fazer para executar bem os trabalhos de fiscalização e de proposição de leis, entre outros. Esse tipo de imaturidade fica evidente diante do fato de que, até aqui, os atuais parlamentares apresentaram cerca de 17 000 projetos, sendo que desse total apenas 188 viraram alguma norma jurídica, um índice de 1,1%, o pior desde 2003, na comparação com os últimos Congressos. Trata-se de uma prova cabal de que grande parte deles perde tempo defendendo ideias irrelevantes — ou, na hipótese mais benigna, quando a proposta faz algum sentido, eles se mostram incapazes de convencer os demais colegas de sua importância. Esse poder de articulação política conta muitos pontos no cômputo de eficiência. “As funções dos deputados são compartilhadas e divididas. Há parlamentares que vão ser mais relevantes para seu eleitorado obstruindo sessões. Outros vão encabeçar projetos importantes que vão tomar tempo de boa parte da legislatura, como a relatoria de alguma PEC”, destaca Graziella Testa, doutora em ciência política da FGV.
Outro ponto fundamental na análise do atual Congresso é o fato de que a Casa viveu no período duas épocas bastante distintas. Na primeira metade da atual legislatura, a relação entre o Poder Excecutivo e o presidente da Casa, Rodrigo Maia (então no DEM, hoje no PSDB), foi marcada por um estado de permanente tensão. Com postura independente, Maia protagonizou várias trombadas políticas com o presidente e algumas caneladas com sua equipe, em especial o ministro Paulo Guedes (Economia), mas teve frieza e competência para conduzir projetos importantes, em especial a reforma da Previdência. Sem a atuação do deputado, o governo Bolsonaro, com uma base política risível, liderada por radicais estreantes sem peso político algum, jamais teria conseguido aprovar a mudança. Foi com Maia também que o governo conseguiu passar a independência do Banco Central, pequenas reformas na legislação trabalhista e enfrentar os primeiros — e incertos — tempos da pandemia. “Foram dois anos de independência da Câmara. Tivemos uma agenda, apesar de o governo não ter pauta do ponto de vista de modernização do Estado, e conseguimos comandar a pauta com o apoio dos líderes”, relembra Maia, que está licenciado, é secretário no governo de São Paulo e nem vai tentar a reeleição a deputado.
A ajuda que Maia deu ao presidente não foi suficiente para demover o chefe do Executivo de trabalhar para tirá-lo do cargo. Bolsonaro investiu pesado na construção de uma aliança com o Centrão, jogou fora o seu discurso contra a velha política, entregou as chaves de boa parte dos cofres e ajudou a empossar Arthur Lira (PP-AL) no comando da Câmara. Começava assim, em fevereiro de 2021, uma nova fase da atual legislatura. Além de ser fiador do governo, Lira, junto com seu grupo, avançou para garantir mais nacos de poder e começar a governar o país juntamente com o Executivo. O pacote incluiu a aprovação de medidas importantes, como a privatização da Eletrobras, mas também iniciativas para fortalecer os deputados, como a ampliação das emendas de relator, o “orçamento secreto”, que saltou de 2,7 bilhões de reais em 2019 para 16,5 bilhões de reais em 2022. Também acenou aos partidos — ao elevar o Fundo Eleitoral para 4,9 bilhões de reais na atual eleição — e à classe política em geral, ao aprovar projetos que dificultam a punição dos malfeitos da classe, como a revisão da lei de improbidade administrativa (que passou a punir apenas se o político tiver tido a “intenção” de alcançar um resultado ilícito). O pacote de Lira anabolizou a sua relevância política, mas também a do cargo que ocupa e da Casa que preside. “Há um movimento de mudança na relação entre os poderes no Brasil. A principal maneira de ver isso é pelo Orçamento”, diz Carlos Ranulfo Melo, pesquisador do Centro de Estudos Legislativos da Universidade Federal de Minas Gerais.
Além de ter sido comandada por duas cabeças completamente diferentes, a atual legislatura é também histórica por um motivo especial: tanto com Maia quanto com Lira, a pandemia, a partir de março de 2020, marcou o trabalho do Congresso. Com sessões presenciais suspensas, as votações passaram a ser virtuais, o que deu ganho de celeridade às matérias. A prática é alvo de crítica da oposição. “Como não precisava estar presente no plenário, havia votações que eram marcadas para 1 hora da manhã e tinha mais de 500 deputados presentes. Quem disse que eles estavam lá?”, questiona Ivan Valente (PSOL-SP), deputado há sete mandatos consecutivos. A prática do sistema remoto vigora até hoje e retirou um dos principais mecanismos da oposição: a obstrução. “Isso prejudicou muito os debates. Fazer debate pela internet é muito rebaixado, nossa obstrução se resume a formular requerimentos de discussão e retirada de pautas”, afirma. Ex-todo-poderoso da Câmara e tentando retornar ao Congresso após um longo período na cadeia, Eduardo Cunha (PTB-SP) afirma que a votação remota foi uma prática tentada em sua gestão, mas não aceita pelos deputados. “Não pode ser um instrumento de momento, tem de facilitar a vida da maioria. Precisa ser mantido”, diz.
O fato de os deputados da oposição perderem força e voz nas votações tem levado ao aumento da judicialização de matérias legislativas. O orçamento secreto foi suspenso pela ministra — e agora presidente — do Supremo Tribunal Federal, Rosa Weber, em resposta às ações apresentadas por PSOL, Cidadania e PSB, que, somados, têm apenas 39 deputados. A magistrada depois decidiu pela liberação, decisão referendada pelo plenário da Corte. O aumento bilionário do Fundo Eleitoral também foi parar no Supremo, questionado pelo Novo, que tem oito parlamentares. O STF manteve o valor, por 9 votos a 2. A judicialização da política ocorre ainda, muitas vezes, por omissão do Legislativo. Em abril de 2021, o ministro Luís Roberto Barroso determinou que o Senado instalasse a CPI da Pandemia, contrariando a postura do presidente da Casa, Rodrigo Pacheco, que havia descartado a abertura da comissão. O colegiado investigou a ação do governo federal na pandemia e jogou luz sobre a negligência em relação à compra de vacinas. “Menor e cada vez mais derrotada em seus pleitos, a oposição sai do Congresso e fica ajuizando tudo o que pode no STF. E o presidente da República sai do eixo e passa a chamar o Supremo de comunista, inflando seu eleitorado”, afirma o cientista político Humberto Dantas, diretor do Movimento Voto Consciente. “Veja o tamanho da confusão quando, na verdade, a oposição queria só anular ou retardar uma votação.”
O aumento do protagonismo do Congresso na segunda metade do mandato de Bolsonaro, que transformou Lira em uma espécie de primeiro-ministro do governo, acendeu o sinal de alerta dos candidatos ao Palácio do Planalto. O ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT), líder das pesquisas, tem demonstrado preocupação sobre como o Executivo pode recuperar o controle do Orçamento, sem fustigar o Centrão, que deve continuar sendo importante nas votações decisivas, independentemente de quem chegar à Presidência. Hoje, os partidos que formam a coligação de Lula somam 120 deputados na Câmara. O número é insuficiente até para aprovar projetos que exigem maioria simples — uma emenda à Constituição (PEC) precisa de 308 votos. A estratégia mais óbvia passa por aumentar o tamanho da bancada na eleição, necessidade que Lula tem ressaltado com frequência nas redes sociais, no horário eleitoral e nos atos públicos. O presidente, no entanto, também aposta na sua capacidade de negociação com os partidos — há quem diga que ele não fecha as portas nem mesmo para uma aproximação com Lira.
Ainda é cedo para saber qual Congresso sairá das urnas na eleição deste ano. Mas é razoável imaginar que ele não deverá ter um alto grau de renovação como o de 2018, até mesmo porque as forças políticas em torno dos dois favoritos, Lula e Bolsonaro, abarcam três de cada cinco deputados atuais. Mas há quem tente. Entre as novidades está o 200+, um movimento suprapartidário que tenta eleger parlamentares baseado em bandeiras que vão na contramão do Legislativo atual, muitas herdadas do lavajatismo. Entre elas estão a redução significativa do Fundo Eleitoral, o fim do orçamento secreto, a extinção do foro privilegiado para políticos e a prisão após condenação em segunda instância. “O Congresso teve alguns retrocessos em relação ao combate à corrupção, e isso impacta diretamente a vida dos cidadãos”, afirma Luciana Alberto, cofundadora do grupo, que tem entre seus expoentes o ex-procurador Deltan Dallagnol, agora candidato a deputado pelo Podemos.
As votações para o Congresso, embora fundamentais, sempre mobilizaram pouco o eleitor brasileiro e atraem interesse menor que as disputas para a Presidência e os governos estaduais. Pesquisa Datafolha de agosto mostrou que 64% dos entrevistados não se lembravam em quem havia votado para deputado federal em 2018. Levando-se em conta os enormes desafios sociais e econômicos que o país terá pela frente, é preciso que os brasileiros dediquem muito mais atenção a essa importante escolha.
Com reportagem de Victoria Bechara
Publicado em VEJA de 21 de setembro de 2022, edição nº 2807