Quem vai trair quem
O discurso econômico dúbio de Bolsonaro e Haddad se dá porque os dois têm uma sombra ao lado — e nem sempre concordam com ela
Se dos dois candidatos hoje favoritos para disputar o segundo turno sair o próximo presidente do Brasil, é certo que, tão logo ele se eleja, outro embate vai começar. As contradições entre o que pensam no campo da economia o presidenciável do PSL, Jair Bolsonaro, e seu consultor econômico, Paulo Guedes, ficam mais estridentes à medida que o capitão da reserva se consolida no topo das pesquisas. Apesar das juras públicas de amor, o candidato à Presidência da República e o candidato a ministro da Fazenda não se entendem em questões tão cruciais como a reforma da Previdência e os limites das privatizações. No caso de Fernando Haddad (PT), o embate se dá entre o político e o seu partido. Quando era apenas um mestre em economia que se tornou ministro e depois prefeito, Haddad podia se dar ao luxo de pensar com a própria cabeça — chegou a se posicionar contra as desonerações tributárias promovidas pelo governo Dilma a setores da indústria e criticou a determinação da ex-presidente de tentar impedir subidas de preços de tarifa de transporte para que a alta não impactasse a inflação. Hoje, porém, o Haddad convocado para substituir o ex-presidente Lula nas urnas — e que passou a engolir os “esses” no palanque no esforço de se aproximar da figura do padrinho preso — fala em controle de preços e interferência do governo na política monetária. Em pontos fundamentais, Bolsonaro guarda diferenças gritantes com seu Posto Ipiranga. Haddad, em sua versão poste, demonstra ter posições aparentemente inconciliáveis com o partido que o nomeou candidato. Se eleitos, eles trairão a si mesmos? Ou as suas sombras?
Até agora, Haddad não fez questão de dirimir publicamente a dúvida. Logo após ser oficializado candidato, ele ouviu do PT que seu programa econômico seria elaborado pelo partido — e não se opôs. “Humildade” seria a palavra de ordem que, segundo a cúpula da sigla, ele deveria ter em mente. Apesar de aceitar publicamente as ordens, o ex-prefeito tem feito acenos ao mercado. Na terça-feira 25, convidou para um café da manhã em seu apartamento, no bairro paulistano do Paraíso, o economista-chefe da corretora Spinelli, André Perfeito. Dele ouviu sobre a preocupação do mercado com a proposta de “mandato dual” no Banco Central. Segundo o programa petista, além de buscar o controle da inflação, o banco passará a ter “compromisso com o emprego” — ou seja, vai usar os instrumentos de política monetária para evitar o aumento do desemprego. Haddad contemporizou, respondendo que essa é “uma ideia que pode ser alterada mais para a frente”. Depois, anunciou que uma das primeiras ações do seu governo, se eleito, será propor a reforma da Previdência.
Sobre quem ocupará o Ministério da Fazenda em caso de vitória, negou as especulações de que tenha convidado o economista Marcos Lisboa, seu amigo e presidente do Insper, mas sinalizou que busca alguém de perfil parecido — respeitado pelo mercado. Tal premissa descartaria automaticamente dois nomes que circundam o presidenciável: Nelson Barbosa, ex-ministro de Dilma Rousseff, e Guilherme Mello, da Unicamp, que colabora para seu programa de governo. “Se o que ele diz é verdade ou não, é uma interrogação”, observou Perfeito. “Mas me parece que o programa foi uma construção coletiva do partido e não reflete o pensamento de Haddad.”
Um dia antes do encontro com o economista, o ex-prefeito encarnava sua outra persona diante de sindicalistas. No palco do clube Homs, na Avenida Paulista, no coração de São Paulo, ele prometeu anular reformas feitas por Michel Temer. Haddad sabe que ainda é alvo da desconfiança de setores de seu partido, temerosos de que, vitorioso, ele resista a abdicar de ideias próprias em prol de um “governo coletivo”. Uma de suas táticas para reduzir as suspeitas de petistas tem sido mostrar total lealdade a Lula. Diz com todas as letras que o ex-presidente preso será o seu principal conselheiro num eventual governo. Na semana passada, petistas começaram a difundir sem embaraço o lema “Haddad no governo, Lula no poder”. O slogan é uma alusão ao movimento “Cámpora al gobierno, Perón al poder”, criado na Argentina pelos peronistas quando o ex-presidente Juan Domingo Perón foi impedido de concorrer por estar exilado. Héctor Cámpora, ex-deputado federal, elegeu-se no pleito em 1973 como poste de Perón, perdoou seus crimes políticos, renunciou ao cargo e convocou novas eleições, vencidas por Perón.
Na quarta-feira 26, no debate promovido pelo SBT, em parceria com o jornal Folha de S.Paulo e o UOL, Haddad foi questionado se seria um candidato “teleguiado” por Lula, por causa das visitas semanais que faz à carceragem de Curitiba. O ex-prefeito respondeu que é, “com muita honra”, advogado do ex-presidente e que não descansará enquanto ele “não tiver um julgamento justo”. Afirmou ainda que “um governo é composto de várias forças políticas”. Jair Bolsonaro, cuja alta deve ocorrer nos próximos dias, não compareceu ao debate.
As divergências entre o candidato do PSL e aquele que será seu “superministro” em caso de vitória, não por coincidência, ganharam corpo quando o presidenciável foi hospitalizado em decorrência do atentado a faca que sofreu em Juiz de Fora (MG), em setembro. Com o chefe fora de combate, Guedes passou a dar detalhes ao mercado financeiro do até então vago plano de governo do deputado capitão. Há dez dias, o economista defendeu a criação de um imposto unificado que incidiria sobre transações financeiras, tal como a CPMF, extinta no governo de Dilma Rousseff. Também falou sobre a criação de uma alíquota única de 20% para o imposto de renda de pessoas físicas e empresas. Bolsonaro se apressou em afirmar que a fala de Guedes havia sido “distorcida” e evitou contrariá-lo publicamente. Nos bastidores, pediu a Guedes que submergisse, alegando que não haveria ganhos para sua campanha se o debate econômico se aprofundasse antes do segundo turno — o que reforçou as desconfianças de que a conversão de Bolsonaro ao liberalismo é, para dizer o mínimo, um tanto frágil. Seguindo o conselho do deputado, Guedes cancelou sua participação em pelo menos seis eventos e não deu mais entrevista.
O entrevero foi o mais recente de uma série de contradições públicas entre os dois. Guedes é ferrenho defensor da venda de todas as estatais, mas o presidenciável tem reduzido cada vez mais a lista de ativos que está disposto a vender. Antes, falava em preservar a Petrobras e as estatais de energia elétrica. Mais recentemente, passou a dizer que a venda do Banco do Brasil e da Caixa está fora de cogitação. A dupla também não tem uma saída comum para a reforma da Previdência. Bolsonaro, questionado sobre o assunto, se limita a dizer que não quer nenhuma mudança que seja profunda e imediata. Já Guedes tem na cartola um plano drástico de mudança do regime previdenciário. Ele defende a ideia de que cada trabalhador deve cuidar de seus aportes previdenciários. Trata-se de uma guinada radical do sistema vigente, que prevê que os mais jovens contribuam para pagar as retiradas dos aposentados.
Faltam dados para aferir as consequências do ruído entre Bolsonaro e seu guru, mas o fato é que o deputado estacionou nas pesquisas, interrompendo a trajetória de alta que havia iniciado desde o atentado. Segundo a última pesquisa Ibope, Bolsonaro tem 27% das intenções de voto, 1 ponto a menos do que no levantamento anterior. Sua rejeição se manteve estável, na casa de 44%. Já a de Haddad caiu 3 pontos.
Em suas andanças pelo país, o petista tem sido seguido de perto por dois lulistas: o presidente do Instituto Lula, Paulo Okamotto, e o ex-diretor da entidade Luiz Dulci, que foram nomeados coordenadores de sua campanha. Gleisi Hoffmann, a presidente do PT e que vive às turras com Haddad, submergiu depois que o ex-prefeito se tornou candidato. Mas tem usado a imprensa e as redes sociais para lembrar o petista a quem ele deve bater continência. No dia 24, postou nas redes sociais que a campanha petista não busca aproximação com o mercado e que Haddad está “falando com o povo, defendendo Lula”. “O mercado já conhece o que pensamos, não precisamos dar explicações!”, disse ela.
Para economistas e agentes financeiros, um eventual governo do petista seria “um enigma”. A ex-presidente Dilma Rousseff passou sua campanha atacando o programa econômico com viés liberal do então candidato tucano, Aécio Neves, e, depois de eleita, nomeou justamente um liberal, Joaquim Levy, para o Ministério da Fazenda. Deu-lhe aval para que tentasse pôr em prática um programa de austeridade fiscal, mas logo as diferenças essenciais entre os dois vieram à tona — e Levy pediu demissão. “Foi traumático para a economia e para os preços dos ativos”, relembra o economista-chefe da Rio Bravo, Evandro Buccini.
O exemplo de Dilma também mostra quão delicada pode ser a relação entre presidente e ministro da Fazenda, mesmo quando há alinhamento programático entre os dois. A petista tinha em Guido Mantega, que ocupou a pasta de 2006 a 2015, seu mais leal colaborador. Isso não a impediu de criticá-lo diversas vezes em público pelas razões mais irrelevantes. O ex-ministro nunca reagiu aos ataques. Contribuíram para isso seu temperamento e sua fidelidade à chefe, características que, até onde se sabe, não constam da lista de atributos de Paulo Guedes no trato com Bolsonaro. No palco do segundo turno cabem só dois candidatos. Mas nestas eleições, tão pouco normais e previsíveis, não é de estranhar que a área esteja um tanto superlotada.
Publicado em VEJA de 3 de outubro de 2018, edição nº 2602