Quando Alexandre de Moraes assumiu a presidência do Tribunal Superior Eleitoral, em agosto deste ano, e virou o principal juiz das eleições gerais no país, esperava-se uma inevitável colisão frontal entre ele e o presidente Jair Bolsonaro (PL), que há muito elegeu o magistrado como um de seus principais desafetos. A combustão tenderia a aumentar porque o chefe da República deixou claro que não arredaria pé da retórica contra a urna eletrônica. O discurso do ministro ao tomar posse foi duro, com recados diretos ao bolsonarismo. Entre exageros e acertos, Moraes segue colecionando trombadas com o presidente, como na recente decisão de quebrar o sigilo do tenente-coronel Mauro Cesar Barbosa Cid, ajudante de ordens da Presidência da República, para apurar movimentações financeiras da família presidencial. Mas quem esperava um confronto direto entre Bolsonaro e Moraes na arena eleitoral tem visto outra figura tornar-se foco de dor de cabeça para o presidente: o corregedor-geral do TSE, Benedito Gonçalves, o juiz que, de decisão em decisão, proibiu Bolsonaro até de fazer lives em sua casa, o Palácio da Alvorada.
O impacto foi direto na campanha do presidente. O magistrado vetou o uso eleitoral dos desfiles de 7 de setembro, da visita a Londres para o funeral da rainha Elizabeth II e do discurso na Assembleia Geral da ONU, em Nova York. No despacho mais recente, proibiu o capitão de realizar lives nos palácios da Alvorada e do Planalto (sede do governo). Todas as decisões partiram do princípio de que não se pode usar a estrutura da Presidência e a posição de chefe de Estado para fins eleitorais. Protocoladas por candidaturas de oposição, as ações foram destinadas a Gonçalves devido à previsão legal de que devem ir para o corregedor as chamadas ações de investigação judicial eleitoral (Aijes), que apuram uso indevido, desvio ou abuso de poder econômico, abuso de autoridade ou utilização indevida dos meios de comunicação.
O uso da estrutura pública quando um governante tenta a reeleição não é incomum e ocorre em qualquer esfera de poder. O que tem havido agora é a confluência de um ministro linha-dura com a afronta explícita praticada por Bolsonaro, que tem agido com menos pudor que seus antecessores. “Nunca vi tanto desrespeito à legislação eleitoral”, avalia o advogado Arthur Rollo, especializado em direito eleitoral. O corregedor também encontrou respaldo entre seus colegas de plenário — três decisões foram referendadas com votação unânime no tribunal. Ex-ministros do TSE ouvidos reservadamente por VEJA também aprovam a atuação do juiz. “Se há indícios de irregularidade, a função da Justiça Eleitoral é suspender”, resume um ex-integrante da Corte.
Mas nem todo mundo concorda. O presidente, claro, reclamou muito. “Hoje vai ter live, o.k.? É uma decisão estapafúrdia. Enquanto eu for presidente, ali (Alvorada) é minha casa”, disse no domingo, um dia após o veto. Mais tarde, fez uma transmissão de um local não identificado. “Será que o TSE sabe onde estou fazendo essa live? ‘Ah, escondido. Será que está no Alvorada?’”, ironizou. O presidente não está sozinho na crítica. O ex-ministro Marco Aurélio Mello, que presidiu três vezes o TSE, contesta as decisões de Gonçalves. “A partir do momento em que não há desincompatibilização, não cabe dissociar as figuras do ocupante do cargo do candidato. Logo, os atos devem ser compreendidos nesse contexto, sem exigir perfil de vestal”, afirma Mello, que declarou voto em Bolsonaro contra Lula.
Nas redes, o bolsonarismo passou a atacar o ministro “indicado por Lula” — que, por outro lado, barrou na última quarta conteúdos da campanha do petista a pedido de Bolsonaro. Ex-desembargador do TRF2, o carioca Benedito Gonçalves de fato chegou ao STJ em 2008 indicado pelo petista. Foi o primeiro negro nomeado à Corte e já esteve cogitado para ir ao STF, nas vagas de Ayres Britto, em 2012, e Joaquim Barbosa, em 2014. Lula e uma ala do PT o apoiavam, mas ele foi preterido por Dilma Rousseff, que preferiu Luís Roberto Barroso e Edson Fachin. No entorno de Lula, Gonçalves voltou a ser cotado para o STF — duas vagas serão abertas em 2023 com a aposentadoria de Ricardo Lewandowski e de Rosa Weber.
Como revelou VEJA em 2015, Gonçalves e Lula tinham um amigo em comum: Léo Pinheiro, da OAS, alvo da Lava-Jato, com quem o ministro trocava mensagens. “Meu amigo, parabéns, o ano 2015 começou ontem. Agora preciso da sua ajuda valiosa para meu projeto”, escreveu ele ao empreiteiro logo após a reeleição de Dilma — o projeto seria a sua ida para o STF. Gonçalves deixou bolsonaristas de orelha em pé também graças a um vídeo em que é cumprimentado, com tapinhas no rosto, por Lula na posse de Moraes. Nas últimas semanas, ele foi alvo de uma tosca montagem em que aparece vestindo uma camisa com o rosto de Lula. Gonçalves está longe de ocupar o posto de Moraes, mas a surpreendente performance na reta final da campanha já o colocou na lista de desafetos do bolsonarismo.
Publicado em VEJA de 5 de outubro de 2022, edição nº 2809