Pressão bolsonarista acelera projetos polêmicos de segurança na Câmara
O pacote mistura medidas sensatas com outras mais controversas — e que foram colocadas na mesma cesta para agradar aos apoiadores radicais de Bolsonaro
Eleitos em 2018 com promessas de priorizar a segurança pública e endurecer as penas para os criminosos, o presidente Jair Bolsonaro e boa parte de sua base na Câmara dos Deputados chegam ao último ano do mandato com poucas realizações nessa área para mostrar a seus apoiadores. A pandemia de Covid-19, que afetou os trabalhos no Congresso, e a dificuldade para costurar consensos com parlamentares independentes e de oposição foram os fatores que dificultaram o avanço. Agora, graças a uma costura política bem-sucedida, será possível levar à apreciação do plenário uma série de projetos de lei que podem render uma boa munição eleitoral aos governistas.
O pacote mistura medidas sensatas com outras mais controversas — e que foram colocadas na mesma cesta com a clara finalidade de agradar aos apoiadores mais radicais e belicosos do presidente. Levado ao comando da Câmara com o apoio de Bolsonaro, Arthur Lira (PP-AL) concordou em reservar uma semana, provavelmente na segunda quinzena de junho, para essa votação. A pressão que viabilizou o acordo veio da Comissão de Segurança da Câmara, com forte presença bolsonarista. O colegiado tem três delegados, um general, dois coronéis, um major, dois capitães, um subtenente, um sargento e dois cabos. A pedido de Lira, a turma aceitou uma concessão: a de evitar pautas corporativistas para agradar aos policiais, base importante do bolsonarismo. “Há uma dívida com a sociedade brasileira e há um sentimento nesta Casa de que algo precisa ser feito”, diz Aluisio Mendes (PSC-MA), presidente da Comissão de Segurança da Câmara.
Entre as iniciativas que são consenso estão a proposta de instalar tornozeleira eletrônica em agressores de mulheres proibidos de se aproximar das vítimas ou que tenham reincidido no crime. Estudo do Fórum Brasileiro de Segurança Pública mostra que em 2021 houve 1 319 feminicídios no país, uma mulher morta a cada sete horas — número 2,4% menor que em 2020, mas ainda inaceitável. Também têm amplo apoio o projeto que eleva a pena para quem comete crimes contra crianças e adolescentes e a medida que cria um cadastro nacional com nomes de condenados por pedofilia.
Pelo apelo popular, a expectativa é que até parlamentares de oposição abracem propostas como a do fim da saída temporária de presos em semiaberto, a “saidinha”. A medida tem a simpatia de Lira, que já a mencionou em entrevistas. Encaixa-se nesse mesmo espírito a tentativa de dificultar a progressão de regime prisional (de fechado para semiaberto), exigindo mais tempo de cumprimento da pena na cadeia. Uma criminosa beneficiada com a progressão foi Elize Matsunaga, que matou e esquartejou o marido, Marcos Matsunaga, em 2012. No semiaberto, trabalhou como costureira, e na segunda 30 ganhou a liberdade condicional. Uma parte dos especialistas em segurança, no entanto, argumenta que o fim da progressão pode agravar a superlotação das prisões.
O homem do governo encarregado de influenciar a pauta do pacote é o ministro da Justiça e Segurança Pública, Anderson Torres. Ele foi à primeira reunião da comissão, em maio, para defender as prioridades da gestão. Um dos projetos defendidos pelo Planalto e que tem apoio na Câmara é o que endurece as punições para o “novo cangaço”, modalidade em que grupos numerosos de criminosos sitiam cidades inteiras, com armamento pesado, explosivos e até ataques a bases da polícia, para assaltar com “tranquilidade” agências bancárias e empresas de transporte de valores. Mas o mesmo texto prevê ampliar a tipificação do crime de terrorismo para qualquer ação violenta praticada com fins políticos ou ideológicos — mudança que causa controvérsia porque pode alcançar os movimentos sociais.
Outro projeto polêmico defendido por Torres prevê que o condenado ressarça prejuízos causados às vítimas e ao SUS. A ideia é que os valores sejam descontados do salário ou FGTS, mas a maioria dos criminosos não tem emprego nem patrimônio. “É um projeto vazio, é mais um discurso de vingança do que algo efetivo, que serve apenas para mobilizar apoiadores”, diz Renato Sérgio de Lima, diretor-presidente do Fórum Brasileiro de Segurança Pública.
Apesar do veto de Lira a iniciativas que beneficiem as corporações, há uma proposta do governo que dá um afago aos policiais. É o projeto que cria a figura do “excesso exculpante” para agentes de segurança que matarem em serviço. Pelo texto, deixa-se de punir o excesso em situações de medo, surpresa ou perturbação do ânimo — algo que relembra o excludente de ilicitude proposto no pacote anticrime do então ministro Sergio Moro e barrado pelo Congresso em 2019. O projeto pretende também ampliar a definição de legítima defesa para situações em que o policial atire em pessoas que estejam portando arma de fogo. Se já estivesse em vigor, essa mudança poderia beneficiar os agentes que atuaram na operação que deixou 25 mortos no dia 24 de maio na Vila Cruzeiro, no Rio de Janeiro, a segunda mais letal registrada na cidade. Isso porque foram apreendidos com os mortos fuzis, pistolas e até granadas, segundo a polícia.
Mais que uma prioridade de governo, o endurecimento do combate à criminalidade é um dos pilares do discurso político do bolsonarismo. Em 6 de outubro de 2018, um dia antes do primeiro turno, Bolsonaro publicou um post no qual dizia que era “preciso pegar pesado no combate ao crime para que o marginal entenda que suas ações não sairão impunes” e concluiu: “A sociedade precisa de uma resposta, nós daremos”. O sucesso da exploração do tema junto à base popular de apoio explica por que o ex-ministro Tarcísio de Freitas (Republicanos), candidato de Bolsonaro ao governo de São Paulo, introduziu a questão no debate eleitoral ao mirar a colocação de câmeras no uniforme da PM, medida que reduziu os confrontos e as mortes por policiais. “Não estou preocupado com a letalidade policial, estou preocupado com a letalidade do bandido”, disse na segunda 30.
Não há dúvida de que a criminalidade é um dos problemas que mais afligem o cidadão e deve ser prioridade de qualquer governo. Mas é preciso que ações de segurança pública e mudanças na legislação penal evitem o proselitismo político e os interesses eleitorais imediatos — o que não parece ser o caso de várias das medidas incluídas em um pacote discutido às pressas, no apagar das luzes do governo e a quatro meses da votação do primeiro turno da eleição presidencial.
Publicado em VEJA de 8 de junho de 2022, edição nº 2792