Desde 2010, o Censo do IBGE mostra que os evangélicos são o segmento religioso que mais cresce, quando atingiu 22,2% da população, ante 15,4% em 2000, um aumento de 16 milhões de pessoas em dez anos. Indubitavelmente, grande parte da vitória de Jair Bolsonaro em 2018 pode ser atribuída à forma com que ele se tornou o candidato preferido por esse imenso rebanho. Na véspera do segundo turno daquele ano, o Datafolha indicava que o capitão tinha a preferência de 59% dos evangélicos, bem à frente de Fernando Haddad (PT), com 26%. Na campanha pela reeleição, Bolsonaro trabalha firme para manter os laços com essa base, enquanto seus principais concorrentes ao Palácio do Planalto em 2022 colocam em prática estratégias destinadas a roubar pelo menos um naco dos votos, com um nível de profissionalização sem precedentes em pleitos anteriores, especialmente porque o segmento continua crescendo e hoje é estimado em quase um terço da população, ou 24% do eleitorado, de acordo com a última pesquisa XP/Ipespe, de março.
Ao longo dos últimos três anos, o governo Bolsonaro esmerou-se em acenos aos fiéis, a começar pelo pagamento da promessa de indicar um nome “terrivelmente evangélico” ao STF — o pastor presbiteriano André Mendonça. Manteve ainda abertas as portas do Palácio do Planalto para os pastores, perdoou dívidas dos templos e distribuiu verbas publicitárias para veículos ligados a eles. Em 2021, priorizou agendas públicas em igrejas evangélicas — só na TV Brasil, o governo transmitiu quase três horas de cultos ao vivo com a presença do presidente. Com a proximidade do pleito, o capitão aumentou os agrados. Ele vem avisando que vai vetar a legalização dos jogos de azar se o projeto passar no Congresso, pauta cara aos evangélicos, mesmo contrariando alas de seu próprio governo e do Centrão. No último dia 8, numa demonstração de força, reuniu em seu apoio mais de vinte líderes no Palácio da Alvorada. A nova ofensiva em direção ao rebanho é uma evidência clara de que, a despeito de todos os gestos já feitos, a manutenção desse apoio não se dará de forma automática, principalmente pelo movimento dos adversários. Prova disso é o último levantamento XP/Ipespe. Segundo ele, a vantagem de Bolsonaro sobre Lula no meio evangélico hoje é de apenas 4 pontos, 37% a 33%.
Quem acompanhou de perto o esforço do petista para não repetir o desempenho fraco de Haddad nas igrejas não se surpreende com esses dados. Depois de declarar que assistia a cultos pela TV enquanto esteve preso em Curitiba, o ex-presidente recebeu o pastor Paulo Marcelo Schallenberger, que lhe apresentou ideias para desfazer algumas “visões erradas” que os evangélicos têm do PT, como a de que pretende perseguir as igrejas ou obrigá-las a praticar atos contrários à sua doutrina (ele propõe que Lula deixe claro que não vai interferir nas escolhas individuais). Espécie de pastor freelancer que prega como convidado em igrejas pentecostais, Schallenberger começou a criticar Bolsonaro nas redes sociais em 2020 e, desde então, vinha buscando aproximação com Lula. Na reunião que tiveram, reforçou a necessidade de o petista reconstruir as pontes com os moradores das periferias, onde se presume que esteja a maioria dos evangélicos. “O fiel mais simples está falando assim: ‘Esse negócio de pauta de costumes não está enchendo minha barriga’”, avalia Schallenberger, para quem somente Lula é capaz de dar resposta à desigualdade.
Com o apoio de lideranças estaduais, o pastor iniciou viagens pelo país, com o aval de Lula, para defender o legado do ex-presidente entre a comunidade. Esteve em Juazeiro (BA), onde diz ter cadastrado centenas de pastores apoiadores do petista, e nas próximas semanas irá a Sergipe. Também está em contato com o PT para criar um podcast voltado para o público evangélico, no qual pretende lembrar que foi nos anos 2000, sob os governos de Lula, que o número de fiéis e de igrejas disparou. Para isso, já escolheu um versículo bíblico, Lamentações 3:21 — “Quero trazer à memória o que me pode dar esperança”. Em outra frente, o PT estruturou núcleos evangélicos em mais de vinte estados para tentar alcançar as bases, sob coordenação da deputada Benedita da Silva (RJ), que é evangélica. O entorno de Lula aposta ainda na interlocução do ex-governador Geraldo Alckmin, provável candidato a vice na chapa petista, com lideranças de São Paulo. “Não é Alckmin que está caminhando para a esquerda, é o Lula que está indo para o centro”, diz Schallenberger nas igrejas.
Não são apenas os favoritos Lula e Bolsonaro que estão na disputa por esse rebanho. O ex-juiz e ex-ministro Sergio Moro (Podemos) tem se reunido com religiosos desde dezembro, com a intermediação do advogado Uziel Santana, ex-presidente da associação de juristas evangélicos. Em fevereiro, Moro lançou uma carta em que se comprometeu a observar princípios cristãos, como não ampliar as situações em que o aborto é permitido. “Parte significativa dos evangélicos carrega um sentimento de orfandade em relação às esperanças que foram depositadas no governo Bolsonaro. O desmonte do combate à corrupção resultou nisso”, diz Santana, para quem os pastores têm demonstrado “gratidão” pelos serviços que Moro prestou com a Lava-Jato.
Presidenciável pelo PDT, Ciro Gomes tem tido apoio de um movimento religioso que está abrigado na sigla desde 2018, os Cristãos Trabalhistas. Liderado pelo pastor Alexandre Gonçalves, o grupo serve como assessoria religiosa para a campanha, opinando sobre os posicionamentos do candidato para aproximá-los do gosto evangélico. Foi a partir de conversas entre Ciro e o pastor que surgiu a ideia de uma recente peça publicitária em que o político mostra a Bíblia e a Constituição, uma em cada mão, e diz que “não são livros conflitantes”. Crítico do identitarismo que tomou parte da esquerda, o pastor defende que Ciro se volte para um “discurso clássico, de defesa dos direitos dos trabalhadores”, a fim de alcançar o eleitorado evangélico.
Um dos grandes desafios dos candidatos ao longo dessa cruzada eleitoral é garantir que os acordos feitos com as lideranças sejam capazes mesmo de influenciar os votos do rebanho, algo que não é tão simples quanto parece. Pesquisador de sociologia e religião pela USP, Renan William dos Santos avalia que os candidatos recorrem aos pastores porque perderam os canais de diálogo direto com os fiéis, sobretudo no caso do PT. Vários estudos apontam que a maioria dos evangélicos não vota seguindo a orientação dos pastores. De acordo com artigo acadêmico publicado em 2019, do qual Santos é um dos autores, 75,8% dos pentecostais e neopentecostais responderam que não levam em consideração a opinião de líderes da sua igreja que fazem campanha para políticos. “As lideranças são centros gravitacionais, mas não são determinantes”, alerta Santos.
O pesquisador também sustenta que, apesar de declararem apoio a Bolsonaro até aqui, os líderes religiosos não romperam as pontes com os demais candidatos, o que permitirá que embarquem no próximo governo seja quem for o presidente. Recentemente, o líder da Renascer, Estevam Hernandes, disse a um podcast que está aberto a conversar com Lula, mesmo sendo apoiador de Bolsonaro. No mês passado, o presidente do Republicanos e bispo licenciado da Igreja Universal, deputado Marcos Pereira (SP), criticou Bolsonaro por “atrapalhar” as novas filiações ao partido, o que pôs em dúvida o apoio incondicional da Universal ao projeto de Bolsonaro. Integrantes da família Ferreira, da Assembleia de Deus de Madureira, se reuniram com nomes da esquerda, incluindo o próprio Lula. São sinais que, para aliados do petista, nutrem a esperança de que essas grandes igrejas se mantenham ao menos neutras na eleição.
A luta a qualquer custo por esses votos também carrega outro problema, que ficou evidente na gestão de Bolsonaro, um presidente claramente à disposição dos interesses dos evangélicos. “Bolsonaro está colocando em risco a laicidade do Estado”, diz o teólogo Eulálio Figueira, do curso de ciência da religião da PUC-SP. Evangélicos no entorno de Bolsonaro esperam que o capitão priorize ainda mais num possível segundo mandato outros assuntos do interesse das igrejas, a exemplo da chamada pauta de costumes, como a regulamentação do homeschooling, o projeto Escola sem Partido e o Estatuto do Nascituro — que pode criar entraves para a aplicação da legislação já existente sobre o aborto. “Antes, a gente não conseguia avançar as pautas mais polêmicas com relação a costumes. No caso de uma reeleição de Bolsonaro, a gente pode caminhar”, diz o deputado federal Sóstenes Cavalcante (União Brasil-RJ), presidente da bancada evangélica da Câmara. Por motivos óbvios, a campanha de Bolsonaro jamais fará menção aos males desse ataque à laicidade do Estado. Mas é lamentável que a maior parte de seus concorrentes prefira fechar os olhos para esse pecado em meio à sua legítima cruzada eleitoral.
Publicado em VEJA de 23 de março de 2022, edição nº 2781