Testei positivo para o coronavírus no dia 20 de março, sexta-feira. Naquele dia, estava assintomático. Um dia depois, tive uma sensação de moleza. Não tinha febre, mas o corpo estava dolorido, sentia cansaço. Não fiquei acamado em nenhum momento, mas a dor muscular era intensa e, por quatro dias, permaneci sem olfato. Foram quatorze dias difíceis (a quarentena termina nesta sexta-feira, 3), ter que administrar um furacão remotamente não é nada fácil, ainda mais porque neste período passamos a positivar casos importados e a notar a presença de transmissão comunitária (a cidade tem 413 confirmados e seis mortes). Esta situação deixa claro que todos nós estamos suscetíveis ao contágio. Sou médico epidemiologista. Mesmo tomando todos os cuidados, lavando as mãos constantemente, evitando aglomerações, comemorações efusivas, fui contaminado, o que dá a dimensão do quanto o vírus tem alto poder de transmissibilidade. Uma situação específica gerou em mim a empatia e a compreensão de que definitivamente não se trata de uma gripezinha, mas de uma pandemia. Ter tido três familiares contaminados (o pai, o ex-reitor da Universidade Federal do Ceará Roberto Cláudio Frota Bezerra, de 73 anos; a mãe, Maria das Graças Rodrigues Bezerra, de 71 anos; e o irmão, o senador Prisco Bezerra, do PDT, de 47 anos) e ter experimentado a contaminação me deram a noção de que estamos, sim, diante de um problema grave que está apenas começando no Brasil e que pode trazer consequências gravíssimas aos mais pobres. Minha mãe ficou hospitalizada por três dias. Não precisou de suporte ventilatório, teve doze dias com sintomas até receber alta. Meu pai está há uma semana entubado, numa situação muito grave, inspira cuidados.
Ter tido três familiares infectados e ter experimentado a contaminação me deram a noção de que estamos, sim, diante de um problema grave que está apenas começando no Brasil
Ao longo destes quatorze dias em quarentena, participei de diversas reuniões longas, todas por videoconferência. Uma atrás da outra. Foram utilizados WhatsApp, Zoom, Skype, qualquer aplicativo que facilitasse o diálogo entre os comitês municipal e estadual criados para contornar esta crise. Os comitês são formados pelos três Poderes, órgãos de saúde, serviços públicos municipais, assistência social, consultores financeiros que nos auxiliam na elaboração de planos de amparo. Nossa missão é tentar antever os próximos quadros para definitivamente prolongar a curva de contágio, a fim de evitar que o sistema de saúde entre em colapso. Aqui em Fortaleza, por enquanto, a maioria dos casos está concentrada em hospitais da rede privada. A incidência é maior nas áreas mais nobres, mas imagine quando isso se disseminar pelas comunidades mais vulneráveis, nas quais duas famílias, com sete ou oito pessoas, compartilham a mesma residência, com dificuldade de transporte, sem informação adequada para identificar a sintomatologia de maior risco para levar o familiar a uma unidade de saúde a tempo. Poderemos viver um cenário muito mais grave do que os países ricos, se não nos cuidarmos agora. Por isso, estamos fazendo campanhas preventivas, com carros de som circulando, para dar a noção da importância do isolamento social e da proteção aos idosos e grupos de risco. Em paralelo, montamos um plano assistencial complexo, que envolve a criação de novas estruturas, mobilização e qualificação de pessoal, proteção de profissionais, familiares e pacientes. Nos últimos dias, colocamos para funcionar hospital com 30 leitos de UTI (Unidade de Terapia Intensiva) e 200 que podem ser adaptados, se necessários. Entregamos 140 leitos nas estruturas de UPA (Unidades de Pronto-Atendimento), e o município está preparando um hospital de campanha que pode ultrapassar os 300 leitos de internação no estádio Presidente Vargas. Tudo isso tendo em mente que, entre o final de abril e o mês de maio, provavelmente teremos uma demanda crescente de acomodações de UTI no sistema de saúde.
Para mim, houve um erro de timing do governo federal que afetou cidades com perfis turísticos, como Fortaleza, que recebe muitos voos. A suspensão das linhas deveria ter ocorrido logo no princípio. Se tivéssemos fechado as fronteiras, poderíamos ter postergado o início da transmissão comunitária. Isso, sem dúvidas, afetou as principais capitais. Agora os aviões estão vazios, porque o mundo entendeu que viajar é um risco. A precoce instalação dos comitês nos permitiu adotar medidas de isolamento muito rapidamente. Começamos a medir o impacto dessa ação e percebemos uma desaceleração importante na curva de contaminação. Tão importante quanto implantar medidas é garantir a efetividade delas. Justamente por isso, posto vídeos e faço lives nas minhas redes sociais. Vivemos um fenômeno abominável das notícias falsas. Propagar mentiras que vão contra o interesse público e que podem macular as estratégias e os propósitos de ação, num momento como esse, podem custar vidas. A informação precisa de base científica oficial. Na condição de prefeito, médico e de alguém que é responsável por algumas medidas que estão sendo adotadas, é minha obrigação usar minhas redes para compartilhar e justificar nossas ações e desfazer informações que geram dubiedade na opinião pública.
O discurso não pode colocar em xeque o isolamento social. Dá para fazer as duas coisas: amparar o trabalhador e se preocupar com o quadro epidemiológico, mas a prioridade é proteger e salvar o maior número de vidas
Se não tratarmos a informação com muito cuidado, o cenário pode piorar. Ao final de cada semana, ouvimos especialistas epidemiológicos para chegar a um consenso projetando um futuro próximo. Preservar vidas é a prioridade, mas numa pandemia também há repercussão de ordem social e econômica. O estado do Ceará já anunciou o pagamento da conta de luz de mais de 500 mil famílias de baixa renda e a redução da conta de água dos mais vulneráveis. O município de Fortaleza vai anunciar um plano de proteção social e de segurança alimentar dentro e fora das escolas, acesso a crédito de subsistência e um plano de ajuste fiscal. O achatamento da curva de casos confirmados vai depender da eficácia destas medidas. Temos que ter apoio público e fiscalização das medidas. Entretanto, em paralelo, estamos mobilizando uma estrutura para pelo menos seis meses de cenário assistencial. Precisamos ser conservadores nessa estimativa. Não pode haver dubiedade. Qualquer dubiedade criada atrapalha o propósito. O discurso não pode colocar em xeque o isolamento social. Dá para fazer as duas coisas: amparar o trabalhador e se preocupar com o quadro epidemiológico, mas a prioridade é proteger e salvar o maior número de vidas humanas.