A Constituição de 1988, forjada na esteira da redemocratização, fez questão de valorizar o voto, tão duramente maltratado na ditadura militar: a Carta definiu que ele seria universal, direto e secreto e que, além de um direito político, passaria a ser um compromisso obrigatório para quem tem de 18 a 70 anos. Mas nas eleições deste ano nunca tanta gente abriu mão da prerrogativa: 23,1% dos eleitores, ou quase um quarto do total, não compareceram às urnas, recorde em disputas municipais no Brasil. Já se previa um impacto no pleito devido à pandemia. Era esperado, no entanto, que boa parte dos faltantes fosse de eleitores idosos, mais vulneráveis à Covid-19. Não foi o que ocorreu. Os maiores porcentuais de ausência entre aqueles obrigados a votar foram registrados entre os jovens de 18 a 29 anos: 23,5%, um aumento de quase 9 pontos porcentuais em relação a 2016 e praticamente o mesmo crescimento verificado entre as pessoas da faixa de 60 a 69 anos.
Os motivos apontados por especialistas para o afastamento dos jovens das urnas são vários: desencanto com a política, uma eleição “mais fria”, com campanhas menos inflamadas e polarizadas, e até mesmo a facilidade de justificar a ausência pelo celular, inovação de 2020. Dos 2,6 milhões de justificativas pelo aplicativo do TSE no primeiro turno, 50% foram feitas por eleitores de 18 a 34 anos.“Os jovens constituem o segmento mais propenso à abstenção e foram atingidos em cheio pela alta da reprovação da sociedade aos partidos por causa da Lava-Jato”, avalia o cientista político e sociólogo Antonio Lavareda. Uma preocupação adicional é que o afastamento dos jovens é ainda maior entre os menos escolarizados: chega a 27% entre os que só leem e escrevem e cai para 19,4% entre quem fez ensino superior completo. “O custo de participação, no sentido de parar, absorver a informação, processá-la e se envolver na discussão, é maior para essas pessoas”, afirma Lavareda.
As abstenções estão longe de ser uma “jabuticaba brasileira”. Mesmo antes da pandemia, os índices em países com voto obrigatório foram de 19,2% na Argentina (2019) a 36,9% no México (2018) e chegaram a 53,2% no Chile (2017), onde a votação é facultativa. A participação de jovens também é baixa nos países mais ricos. Nas últimas eleições europeias, em 2019, apenas 28% daqueles com 18 a 25 anos votaram. No Brasil, o baixo interesse juvenil levou o Tribunal Superior Eleitoral a veicular uma campanha neste ano com o tema “Seu voto tem poder” e frases como “Bora agir” e “Nunca é cedo para começar a fazer a diferença”. “As gerações que não viveram a ditadura, por vezes, consideram o ambiente democrático tão normal que vivem nele sem sequer se dar conta. Por um lado, essa naturalidade é boa. Por outro lado, é sempre bom lembrar que a democracia é feita da participação ampla da sociedade”, diz o presidente do TSE, Luís Roberto Barroso, que vai continuar incentivando os jovens. “A vida institucional é feita tanto da preservação de boas tradições quanto da renovação de ideias”, afirma.
Os especialistas, no entanto, detectam certa fadiga com o sistema e destacam que o país vive uma transição velada para o voto facultativo, incentivada até pelas punições leves — a multa máxima é de 3,51 reais por turno. A tendência deve obrigar os partidos a cada vez mais inserir nas campanhas algo visto em países sem voto obrigatório: a necessidade de, além de atrair o eleitor, estimulá-lo a ir às urnas.
No Brasil, o voto facultativo nunca empolgou a classe política. Desde 2006, ao menos seis iniciativas para desobrigar o eleitor de votar foram arquivadas ou rejeitadas no Congresso. As discussões opõem quem acha que o cidadão não pode ser obrigado a exercer um direito aos que apontam as consequências sociais da mudança. “Há uma tendência de o voto facultativo excluir mais as pessoas mais pobres, menos escolarizadas”, diz Cláudio Couto, cientista político da Fundação Getulio Vargas. Para Barroso, em uma democracia jovem, isso também tende a favorecer a polarização, já que os extremos ideológicos são mais mobilizados. É verdade. Mas, diante do que ocorreu na eleição de 2020, não há mais como adiar esse debate.
Publicado em VEJA de 16 de dezembro de 2020, edição nº 2717