Na eleição para a presidência da Câmara dos Deputados, disputa-se, entre outras coisas, uma espécie de preliminar da próxima corrida ao Palácio do Planalto. Candidato de Jair Bolsonaro ao cargo, o deputado Arthur Lira (Progressistas-AL) é expoente do notório Centrão, grupo de partidos que sofre de governismo atávico e está comprometido por enquanto com a reeleição do presidente. Seu principal adversário é o deputado Baleia Rossi (MDB-SP), que conta com o apoio de legendas de centro e de esquerda que querem derrotar “o candidato do Bolsonaro” agora e lançar postulantes à Presidência da República em 2022. Como faltam quase dois anos para a eleição, nada garante que as articulações de hoje serão repetidas amanhã. Se as crises econômica e sanitária se agravarem e a popularidade de Bolsonaro despencar, o Centrão de Lira pode muito bem debandar e passar a trabalhar contra o ex-capitão, repetindo o que fez com Dilma Rousseff. Nada impede também o presidente de, em meio a eventuais dificuldades, abrir de vez as portas da administração ao MDB de Rossi, exatamente como Lula fez ao ser acossado pelo mensalão.
Até por isso, por mais tentador que seja pensar em formas de manter ou conquistar o poder federal, cabe aos eleitos na Câmara — e também no Senado — priorizar não os projetos eleitorais dos quais são parte, mas pautas legislativas que possam ajudar o país a reaquecer a economia, reorganizar as finanças e atenuar as dificuldades enfrentadas por parcelas da população que perderam emprego e renda durante a pandemia. A tarefa não é fácil — nem pode ser realizada sem a colaboração do governo, que, em tese, detém os instrumentos mais poderosos para converter votos no plenário. Na terça-feira 26, em videoconferência organizada pelo banco Credit Suisse, o ministro da Economia, Paulo Guedes, defendeu a vacinação em massa, as privatizações e as reformas a fim de destravar a atividade econômica. Como os dois últimos temas dependem da análise do Congresso, Guedes pediu ajuda aos parlamentares. O problema é que, até agora, nenhuma autoridade da cúpula da República se empenhou tão pouco por vacinação em massa, privatizações e reformas quanto Bolsonaro. O primeiro a ser convencido da urgência do caso, portanto, deve ser o presidente da República, que tem abandonado de forma gradativa a agenda liberal e o projeto de modernização do Estado.
Recentemente, Bolsonaro ameaçou intervir no Banco do Brasil e viu o chefe da Eletrobras pedir demissão depois de atestar que não há empenho de fato pela venda da estatal. Antes, Bolsonaro havia determinado a Guedes que mantivesse a proposta de reforma administrativa em banho-maria, porque poderia desagradar ao funcionalismo público — e este, contrariado, poderia lhe negar votos em 2022. Entre políticos e empresários, há consenso de que, se o presidente não tomar a dianteira das negociações pelas privatizações e reformas, essas propostas dificilmente avançarão no Congresso, mesmo que candidatos apoiados pelo Planalto ganhem na Câmara e no Senado. Durante a videoconferência do Credit Suisse, Bolsonaro encenou o papel que lhe cabia e defendeu o teto de gastos: “Não vamos deixar que medidas temporárias relacionadas com a crise se tornem compromissos permanentes de despesas”. A principal medida temporária na pandemia foi o auxílio emergencial, pago a 68 milhões de pessoas, a um custo de cerca de 320 bilhões de reais. O benefício acabou em dezembro. Bolsonaro e Guedes já se disseram contrários à sua prorrogação. Falta, mais uma vez, combinar com o Congresso.
Os dois principais candidatos na Câmara, Lira e Rossi, e no Senado, Rodrigo Pacheco (DEM-MG) e Simone Tebet (MDB-MS), deram declarações a favor da renovação do auxílio. É um sinal claro de que o governo corre o risco de ser enredado da mesma forma como aconteceu no ano passado. Em 2020, a equipe econômica propôs um auxílio de 200 reais, acompanhado do pedido de aprovação de medidas destinadas a reduzir o gasto público. Os parlamentares aumentaram o valor do benefício para 600 reais, mas não votaram nem as reformas nem a chamada PEC Emergencial, que prevê corte de despesas com o objetivo de garantir respeito ao teto. A história só será diferente neste ano — e esses projetos só ganharão tração — se o presidente trabalhar por eles, sem perder tempo e energia com iniciativas inviáveis. Um exemplo: sem conseguir reequilibrar as contas públicas, Guedes insiste na criação de um imposto para custear o auxílio emergencial ou o novo programa de assistência social do governo. Como a carga tributária do país é exorbitante, o Congresso acertadamente tem rechaçado a ideia, também repudiada por empresários e industriais.
Já o presidente, em vez de negociar a pauta econômica, dedica-se a incentivar sua base mais ideológica a trabalhar por uma agenda de costumes. Já seria um erro de foco numa situação normal, mas se torna ainda mais grave num período de forte crise sanitária e econômica. O curioso é que Bolsonaro não enfrenta um Congresso oposicionista em questões de economia. Longe disso. Na Câmara, Arthur Lira e Baleia Rossi votaram de forma majoritária com o Planalto nessa seara. Os partidos de ambos têm cargos na administração federal e uma das principais bandeiras do candidato do MDB é justamente a reforma tributária. “A Câmara precisa responder às demandas mais urgentes da sociedade. Neste momento de pandemia, isso passa pela vacina e pelo apoio aos desassistidos, sem comprometer as contas públicas. Precisamos construir um projeto mais amplo, de discussão das questões federativas”, diz Rossi. Lira prega respeito ao teto de gastos, defende um novo pacto federativo e promete trabalhar pela PEC Emergencial. Os dois retomam, no discurso, promessas de campanha da dupla Bolsonaro e Guedes. “As reformas estruturantes são necessárias para o Brasil. Podemos tratar do tema com muito diálogo logo no primeiro semestre”, afirma Lira.
A convergência de ideias não é o único ponto favorável ao presidente. Os nomes apoiados por ele nas duas Casas despontam como favoritos. Na Câmara, Lira conseguiu apoios até de deputados do DEM, partido do atual presidente da Casa, Rodrigo Maia (RJ), o principal padrinho da candidatura de Rossi. O líder do Centrão já havia conquistado parte das bancadas de outras legendas que fecharam com o emedebista. Na reta final de campanha, o governo resolveu ajudar seu pupilo com uma tradicional moeda de troca: quem fecha com Lira mantém ou ganha cargos, enquanto os apoiadores do rival veem seus apadrinhados ser demitidos da máquina pública. No Senado, a vitória do nome de Bolsonaro é considerada ainda mais provável. Rodrigo Pacheco conseguiu o apoio do Planalto e do PT e ainda impediu que o PSDB se aliasse à adversária Simone Tebet, o que rendeu críticas de Fernando Henrique Cardoso aos colegas de partido. Segundo o ex-presidente, essa decisão pode dificultar a vida dos tucanos na hora de pedir votos em 2022. Como ocorre na Câmara, há ambiente propício no Senado para o debate da agenda econômica, independentemente de quem vença.
“A pauta econômica é prioridade. Já nas pautas de costumes, acho que é preciso deixar claro que não podemos aceitar retrocessos”, diz Simone Tebet. “Defendo um trinômio fundamental para a atuação legislativa, que passa pela defesa da saúde pública, do desenvolvimento social, porque precisamos criar um colchão social para abrigar as pessoas que foram atingidas muito severamente pela pandemia, e do crescimento econômico, que permita a criação de emprego e renda, desonerando o Estado”, afirma Pacheco. Pelas declarações dos candidatos, vê-se que o caminho está pavimentado para tirar do papel pelo menos parte da cartilha de Guedes. Resta saber se o Congresso e o presidente finalmente se empenharão por essa agenda ou deixarão novamente a missão de lado em nome de interesses menores. Se isso acontecer, o maior prejudicado é o Brasil.
Publicado em VEJA de 3 de fevereiro de 2021, edição nº 2723