Na eleição nacional de 2022, saíram do bolso dos contribuintes nada menos que 6 bilhões de reais para custear as despesas da gigantesca máquina partidária brasileira. Ela tem nada menos que trinta partidos registrados na Justiça Eleitoral, a maioria sobrevivendo apenas de dinheiro público. A quantia assustadora — maior que o orçamento de áreas inteiras do governo, como a da Cultura, por exemplo — cravou um recorde nesse tipo de gasto e deixou a sociedade perplexa. Esperava-se ao menos que aquele seria o teto para esse tipo de despesa e que a destinação do dinheiro do Tesouro seria feita com transparência e respeito a normas rígidas. Mas isso está longe de acontecer. Nas últimas semanas, líderes das principais siglas, da direita à esquerda, vêm se movimentando para promover uma gastança inédita, além de flexibilizar a aplicação de punições às legendas que não respeitaram as regras para uso dessa verba.
Um dos principais movimentos é, claro, no sentido de captar mais dinheiro. A pressão é exercida sobre o relator do projeto da LDO (Lei de Diretrizes Orçamentárias), o deputado Danilo Forte (União Brasil-CE), para aumentar o valor destinado ao Fundo Especial de Financiamento da Campanha, conhecido como Fundo Eleitoral, para a disputa municipal de 2024. Na proposta enviada pelo governo Lula, o ministro da Fazenda, Fernando Haddad, colocou uma espécie de trava ao sugerir que o valor seja exatamente o do ano passado: 4,9 bilhões de reais. Boa parte dos políticos acha que isso não é suficiente, alegando que a eleição para prefeitos e vereadores tem muitos mais candidatos.
O assunto é discutido nos corredores da Câmara e de maneira velada. Quase ninguém se arrisca a tratar publicamente de tema tão impopular. Um dos poucos a se manifestar, o deputado Marcos Pereira (Republicanos-SP) sugeriu que o valor seja ao menos reajustado pela inflação, o que já elevaria o montante a quase 5,5 bilhões de reais. Essa quantia é próxima, aliás, da que os congressistas tentaram emplacar em 2022, quando aprovaram 5,7 bilhões, quase o triplo dos 2,1 bilhões que o governo havia proposto — Jair Bolsonaro vetou, seguiu-se uma negociação e o montante foi reduzido em alguns milhões. A decisão, de novo, será de responsabilidade do Congresso. “Hoje não há critério técnico para definição do valor do Fundo Eleitoral. Só político”, diz o secretário-geral da Academia Brasileira de Direito Eleitoral e Político (Abradep), Luiz Gustavo de Andrade. É importante lembrar que os partidos ainda dispõem de uma outra fonte de dinheiro público, o Fundo Partidário, que vai distribuir 1,2 bilhão de reais em 2024, quase 200 milhões a mais do que em 2022.
O esforço para aumentar o dinheiro aos partidos, no entanto, não se dá apenas com o Fundo Eleitoral. A PEC (Proposta de Emenda à Constituição) 9/2023, assinada por quase 200 parlamentares, autoriza as legendas a arrecadar recursos de pessoas jurídicas para quitar dívidas contraídas até agosto de 2015, quando o Supremo Tribunal Federal proibiu o financiamento por empresas. O objetivo era fechar a porta a irregularidades, como as que vinham sendo expostas pela Lava-Jato, então no auge, entre elas esquemas bilionários envolvendo grupos como Odebrecht e JBS. A ironia é que o Fundo Eleitoral, criado em 2017 exatamente em razão do fim do financiamento empresarial, virou também uma imensa fonte de ilegalidades.
A mesma PEC ainda concede outro grande benefício aos partidos no uso do dinheiro público. A proposta oferece ampla anistia às legendas que tiveram irregularidades nas contas apresentadas ao Tribunal Superior Eleitoral, seja pela não aplicação de cotas mínimas para mulheres e negros, seja por malversação do dinheiro. Pela resolução do TSE, partidos que descumprissem as normas seriam multados e ficariam sem recursos dos fundos. “É uma aberração inserir isso na Constituição”, bradou na última semana em plenário o deputado Chico Alencar (PSOL-RJ). A PEC já foi aprovada pela Comissão de Constituição e Justiça. No dia 2 foi instalada na Câmara a comissão especial que irá analisar a proposta — o colegiado se reuniu pela primeira vez na terça-feira 15, já sob pressão de movimentos sociais. “Se aprovada, será a quarta ou quinta vez que os partidos receberão anistia por irregularidades nas contas”, relembra a presidente do Observatório Eleitoral da OAB-SP, Maíra Recchia.
O controle sobre o uso do dinheiro público, bem como a aplicação de sanções, é mais do que necessário para evitar aberrações. E elas são muitas. Um bom exemplo é o PTB. O partido gastou 2,1 milhões de reais no ano passado para pagar ao advogado Luiz Gustavo Pereira Cunha. Ele defendeu o presidente de honra da legenda, Roberto Jefferson, preso desde o fim do ano passado. Cunha, que é dirigente da legenda, vendeu e trocou armas com Jefferson, que, às vésperas da eleição, atirou e jogou granadas em policiais que foram cumprir um mandado de prisão expedido pelo Supremo.
Outro mau exemplo é o do PL, que pagou 1,1 milhão de reais a um instituto para produzir um documento cheio de informações inverídicas usado pelo partido para contestar as urnas eletrônicas após a derrota de Jair Bolsonaro. O Podemos, um partido pequeno, gastou 3 milhões de reais para promover a campanha presidencial de Sergio Moro, que ao final deixou a legenda e acabou candidato ao Senado por uma outra sigla, o União Brasil. O PT se destacou pelas viagens: gastou nada menos que 2 milhões de reais só para pagar jatinhos para o deslocamento de Lula durante a campanha eleitoral.
Além de mais dinheiro, a provável distribuição recorde de verba pública em 2024 vai gerar como efeito colateral uma maior concentração de renda. Na eleição passada, só doze dos 28 partidos e federações que disputaram conseguiram cumprir a cláusula de barreira, um desempenho eleitoral mínimo para que a sigla continue tendo financiamento público. Ou seja, haverá mais dinheiro em 2024 para um número menor de legendas. O PT e o PL serão beneficiados porque elegeram mais deputados. Mas há espaço para mais gente entrar no bolo. O mesmo PTB, que elegeu apenas um deputado federal, poderá se candidatar à divisão dos recursos se aprovar sua fusão com o Patriota, que já tem parecer favorável da Procuradoria-Geral Eleitoral.
Especialistas consideram que os fundos públicos são importante ferramenta para garantir o funcionamento dos partidos e reduzir o impacto do poder econômico, mas os critérios para a definição do valor e sua aplicação ainda deixam a desejar. O financiamento público eleitoral não é uma “jabuticaba” brasileira. Nos Estados Unidos, candidatos à Presidência podem receber até 20 milhões de dólares, contanto que abram mão de doações privadas. Um estudo da União Europeia constatou que praticamente todos os países-membros adotam um modelo híbrido de verbas públicas e doações privadas e, em geral, o financiamento é destinado às despesas correntes dos partidos e vetado a gastos de campanha. Na Alemanha, os fundos públicos são restritos aos representantes no Legislativo — em 2020, eles receberam 119 milhões de euros. Além da fiscalização frouxa, outro dos desafios do sistema brasileiro é encontrar um equilíbrio entre o uso de dinheiro público e as doações privadas, na avaliação de Marilda Silveira, professora de direito do IDP e coordenadora da ONG Transparência Eleitoral. “Não faz sentido o financiamento ser exclusivamente público, como também não fazia o modelo de empresas sem limite de doações”, diz.
A história das campanhas eleitorais brasileiras é permeada, infelizmente, de muitas irregularidades. Do voto de cabresto da República Velha aos bilionários fluxos de dinheiro revelados pela Lava-Jato, o que não falta é motivo para as instituições aperfeiçoarem cada vez mais o controle do financiamento, ainda mais quando o que se está em jogo é o dinheiro público. O que se vê no momento, no entanto, é exatamente o oposto disso. Quem paga a conta disso é você, o contribuinte.
Colaborou Bruno Caniato
Publicado em VEJA de 18 de agosto de 2023, edição nº 2855