Nos mais de quarenta anos que separam 1979 de 2022, a política brasileira saiu do sistema de bipartidarismo, com Arena e MDB, para nada menos que 32 legendas registradas no TSE, um recorde alcançado nas últimas eleições. Se é verdade que o sistema imposto pela ditadura era reprovável, uma tentativa de limitar a ação política, também é fato que o cenário atual não foi consequência apenas de uma febre democrática. Muito pelo contrário. A profusão de legendas foi estimulada, entre outros, pelos interesses particulares dos caciques e a possibilidade de fazer de uma legenda um bom negócio alavancado por polpudas verbas públicas.
No meio dessa selva partidária, algo começa a mudar, graças ao avanço da cláusula de barreira. Implantada em 2018, ela se guia pelo desempenho nas urnas para impor condições para acesso ao Fundo Partidário, à propaganda na TV e à estrutura na Câmara. Neste ano, a exigência era de ao menos 2% dos votos, em nove estados da federação, ou onze deputados federais eleitos. Aplicada essa regra, nada menos que quinze siglas correm agora algum risco de sobrevivência. Dentro do espírito do salve-se quem puder, o mercado político anda agitado com uma onda de discussões em torno de fusões e formações de blocos partidários ou federações.
O botão de pânico foi ligado logo após a eleição. Cinco dias depois do fechamento das urnas, Pros e Solidariedade anunciaram a fusão. O PTB, cuja primeira versão foi criada por Getúlio Vargas, acabou sendo punido pelas aventuras presidenciais do ex-deputado Roberto Jefferson e do padre Kelmon Souza: elegeu só um deputado e foi obrigado a juntar-se ao Patriota para criar uma nova legenda, a Mais Brasil. O PSC, que negociava com o Avante e o Podemos, decidiu ser incorporado pelo segundo.
A onda não envolve apenas siglas nanicas. Legendas como o PSDB veem no momento uma oportunidade para reorganizar o centro político. Caciques tucanos, que já têm uma federação com o Cidadania, admitem conversas para também se unirem ao Podemos e atrair setores do MDB. À esquerda, PDT e PSB têm negociações adiantadas para a formação de um bloco, com a expectativa de transformá-lo em federação. Outras legendas resistiram justamente através da formação de federações — PSOL e Rede se aliaram, enquanto PV e PCdoB firmaram um acordo com o PT.
O desespero provocado pela falta de votos atingiu até uma das maiores surpresas das urnas nos últimos anos. Em 2018, o Novo chamou a atenção ao estrear numa eleição nacional emplacando oito deputados federais e levando o empresário João Amoêdo ao quinto lugar na corrida presidencial. Quatro anos depois, elegeu só três deputados e ficou em uma situação difícil. No meio de tudo isso, mergulhou numa crise política, cujo golpe mais recente foi a saída de Amoêdo, que acusou a legenda de, entre outras coisas, estimular ações contra a democracia. A saída da crise promete ser longa. O partido nasceu com a ideia de não se render a velhas práticas políticas, o que inclui a formação de coligações. Publicamente, a sigla não cogita fusões ou federações, embora faça consultas periódicas aos filiados sobre o tema. Em tese, o Novo sofre menos o impacto da cláusula por não depender do Fundo Partidário e por ter uma estrutura menor que a média na Câmara. Mesmo assim, estuda integrar um bloco, o que seria inédito no Novo. “Está no nosso radar se reunir com partidos que não farão parte da base do governo Lula”, afirma Tiago Mitraud, líder na Câmara.
Em que pesem os revezes, ter um partido é um bom negócio. Mesmo legendas minúsculas, como Unidade Popular (que estreou em 2022), PRTB e PCO, que não elegeram ninguém, receberam 3 milhões de reais neste ano cada uma só para disputar a eleição. No total, o Fundo Eleitoral distribuiu 4,9 bilhões de reais, um recorde histórico. A tendência, porém, é de que os nanicos desapareçam e tornem o sistema brasileiro mais parecido com outros modelos. Até porque a cláusula será mais exigente em 2026 (mínimo de treze deputados e 2,5% dos votos). Nosso sistema dificilmente se igualará ao dos EUA, onde, apesar de serem permitidos vários partidos, apenas dois conseguem se estruturar nacionalmente, mas poderá mirar na realidade alemã. O país europeu tem menos de uma dezena de siglas relevantes e fica claro quem é conservador, liberal, social-democrata, esquerda ou verde. “Apesar de a Alemanha não ter um presidencialismo como o nosso, é um exemplo válido e positivo de comparação entre democracias multipartidárias”, diz Leandro Consentino, cientista político do Insper.
O desespero vivido por alguns partidos é, ao fim, um mal que vem para o bem. Ter menos legendas aumenta a clareza do eleitor sobre a bandeira de cada partido, aglutina forças políticas e melhora a governabilidade, uma vez que impede um Congresso fragmentado e menos efetivo. O desincentivo ao excesso de correntes, sem que haja a proibição, pode ajudar a criar um sistema eleitoral mais razoável e que seja de fato positivo para a democracia.
Publicado em VEJA de 7 de dezembro de 2022, edição nº 2818