Em 2018, Jair Bolsonaro usou a chamada “pauta de costumes” como uma de suas bandeiras em sua vitoriosa campanha à Presidência da República. De olho no eleitorado conservador, ele defendeu a redução da maioridade penal, de 18 para 16 anos, a facilitação do acesso às armas pela população e outras iniciativas de forte apelo em sua base ideológica, como o projeto Escola sem Partido. Decorridos quase três anos do mandato de Bolsonaro, pouca coisa dessa agenda saiu do papel. A exceção ficou por conta das medidas a favor do armamento. De nove projetos da “pauta de costumes” elencados como prioritários este ano pelo governo, apenas o do homeschooling avançou um passo na Câmara, onde foi aprovado pela Comissão de Constituição e Justiça (CCJ). Ainda não há data para o texto ser votado em plenário. Já o debate sobre o Escola sem Partido, por exemplo, segue parado no Parlamento, mas o plano dos bolsonaristas é retomá-lo no ano que vem, a fim de, mais uma vez, contrapor-se aos rivais petistas.
Bolsonaro sabe que a “pauta de costumes” sozinha não garantirá a reeleição dele, mas avalia que o tema quase sempre resulta em desgaste para o PT e, por isso, deve ser explorado. Com a crise econômica e o impacto provocado pela pandemia de Covid-19, retomar a pregação conservadora nos costumes é uma maneira de impedir uma desidratação ainda maior de sua base de apoio, que, de acordo com essa tese, teria tamanho suficiente para lhe garantir uma vaga no segundo turno da próxima sucessão presidencial. “Temos pautas superimportantes, que são as reformistas, mas não podemos abrir mão de seguir com a pauta conservadora também. Afinal, o nosso eleitorado espera isso da gente”, diz a deputada Bia Kicis (PSL-DF), contumaz compartilhadora de fake news em suas redes e presidente da CCJ. Em eleições anteriores, a pauta de costumes incomodou o PT, que tem consciência do peso dessa agenda na disputa que trava com Bolsonaro pelos eleitores evangélicos. Em 2010, pressionada por líderes religiosos, a então candidata Dilma Rousseff se viu obrigada a assinar um compromisso de não propor alterações na legislação sobre o aborto.
O impacto desses argumentos conservadores durante uma campanha presidencial já foi sentido pelo próprio grupo do presidente. Em 2018, bolsonaristas exploraram a elaboração de um kit anti-homofobia pelo Ministério da Educação na gestão de Fernando Haddad para espalhar a versão de que, se eleito presidente, o ex-ministro distribuiria um “kit gay” nas escolas públicas. Essa fake news viralizou com força nas redes sociais. “A pauta de costumes nunca sai de moda, está no DNA do debate político, principalmente em nosso país de esmagadora maioria conservadora”, diz o pastor e deputado Marco Feliciano (PL-SP), que tenta se cacifar como vice na chapa de Bolsonaro em 2022.
Não há dúvida de que o apelo conservador surte algum efeito num país como o Brasil. O DEM encomendou recentemente uma pesquisa que mediu o apelo da pauta de costumes no eleitorado. O levantamento mostrou que a maioria dos entrevistados é a favor da redução da maioridade penal para 16 anos (74%), da prisão perpétua (64%), da pena de morte para crimes bárbaros ou cruéis (61%). O levantamento, porém, também mostra que para a maioria da população esses temas não são prioritários. O eleitor quer emprego, renda e serviço público de saúde de qualidade. Bolsonaro, portanto, terá de mostrar resultado em searas do mundo real. “A pauta de costumes é um instrumento de mobilização importante do núcleo duro do bolsonarismo. Digamos que seja uma condição necessária para o sucesso da campanha reeleitoral de Bolsonaro, mas está muito longe de ser uma condição suficiente”, afirma o cientista político Paulo Kramer, que ajudou a formular o plano de governo do presidente em 2018.
A questão é que tal opção pode se tonar um tiro no pé. Com base na força conservadora-religiosa, a aposta do presidente é garantir um lugar no segundo turno e depois trazer os mais moderados para bater Lula. O risco é ele mostrar-se desconectado dos problemas mais imediatos das pessoas (pelo quais ele é visto como responsável) e perder a imagem de alguém que possa ganhar do petista, o que provocaria a migração do eleitorado anti-PT para um candidato que seja identificado com esse público, mas sem os seus defeitos. Além disso, o eleitor brasileiro mostra-se contrário a esse conservadorismo em alguns temas. A maioria, por exemplo, é a favor da adoção de crianças por casais homossexuais e rejeita a liberação indiscriminada de armas (veja quadro). “Entrar muito forte na agenda de costumes é um erro: você cria uma dissidência onde não precisa e tira o foco das principais preocupações em que as pessoas estão de olho hoje”, diz o cientista político Luiz Felipe d’Avila, entusiasta da criação de um candidato de terceira via.
Até aqui, de fato, os problemas do cotidiano têm sido mais importantes do que as bandeiras comportamentais. Um levantamento feito a pedido de VEJA pela empresa de inteligência digital AP Exata, em parceria com o banco ModalMais, revela que a pauta de costumes ainda não entrou no debate sobre as eleições do ano que vem. Um monitoramento de 2,3 milhões de comentários publicados de janeiro a agosto no Twitter, que mencionam os principais candidatos à Presidência, aponta que “Covid” e “saúde” permanecem entre as principais preocupações dos internautas, ainda que tenham perdido um pouco da relevância com o avanço da vacinação contra o coronavírus. Os temas “inflação” e “emprego” passaram a ocupar mais espaço nas discussões virtuais, acompanhando a deterioração dos indicadores econômicos. “O presidente tem capacidade de transformar essa pauta em um fator importante, porque ele tem muitos evangélicos com ele, mas certamente o impacto não será tão forte quanto foi nas últimas eleições”, avalia o CEO da AP Exata, Sergio Denicoli.
Fiel ao seu estilo, Bolsonaro não tem medido esforços para trazer tal agenda à tona — inclusive uma inexistente ameaça comunista. Numa entrevista recente, ao comentar a indicação do pastor André Mendonça para o Supremo Tribunal Federal (STF), ele declarou que espera de um ministro da Corte, entre outras coisas, zelo com a pauta de costumes. Hoje, aguardam julgamento no STF temas como a descriminalização da maconha e do aborto. Como presidente da República, Bolsonaro nunca deu muita atenção a esses dois assuntos. Preferiu o cercadinho, brigas imaginárias e flertes com uma ruptura institucional. Como candidato à reeleição, essa agenda agora virou sua bola de segurança. Detalhe: não é tão segura assim.
Publicado em VEJA de 6 de outubro de 2021, edição nº 2758