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Os preocupantes sinais populistas no início do novo governo Lula

Presidente indica que pretende enfrentar os problemas econômicos do país a partir de receitas ultrapassadas, que servem apenas para iludir a plateia

Por Daniel Pereira Atualizado em 4 jun 2024, 11h12 - Publicado em 6 jan 2023, 06h00

Ao assumir pela primeira vez a Presidência da República, em 2003, Luiz Inácio Lula da Silva ignorou a cartilha petista e adotou uma política econômica austera a fim de reequilibrar as contas públicas, combater a inflação e conquistar a confiança dos investidores. Vinte anos depois, ao ser empossado pela terceira vez no cargo, ele vem sinalizando um caminho diferente, deixando de lado o receituário de sucesso adotado em seu primeiro mandato e defendendo teorias econômicas caras ao PT que contribuíram para a recessão histórica registrada no governo de Dilma Rousseff. Em pronunciamento no Congresso no dia de sua posse, Lula criticou o mecanismo vigente de controle de gastos, reafirmou a crença no intervencionismo estatal como indutor do crescimento, anunciou a revisão da reforma trabalhista e atacou as privatizações. Deixou no ar a sensação de que Lula 3 terá pouco de Lula 1 e apostará em estratégias já testadas e reprovadas. Nos dois dias seguintes ao discurso, a bolsa caiu e o dólar subiu, num indício de que o populismo irresponsável, se for de fato a opção escolhida pelo presidente, pode custar caro ao país — não apenas ao mercado, sempre demonizado pelos petistas, mas principalmente aos mais pobres, a quem Lula jurou priorizar.

Suas primeiras manifestações como mandatário são preocupantes. Aos congressistas, tachou de “estupidez” o teto de gastos e prometeu revogá-lo, sem explicitar o que o novo governo proporá em substituição para impedir uma deterioração ainda maior das contas públicas. Criado no governo de Michel Temer, o teto foi um instrumento importante para transmitir aos investidores a estabilidade e previsibilidade de que o país precisava. Bem-sucedido, ele ajudou a reverter o cenário de desolação econômica deixado por Dilma. É verdade que Jair Bolsonaro também desmoralizou o teto, apostando na gastança como arma eleitoral, mas ele ainda tinha a pandemia como desculpa. Lula, antes mesmo da posse, apostou tudo na aprovação de uma emenda constitucional que autorizou a nova administração a gastar neste ano 145 bilhões de reais a mais do que o limite. O presidente alegou que só com essa PEC conseguiria ampliar o programa Bolsa Família, conforme prometido, e recuperar o orçamento de ações consideradas prioritárias em áreas como saúde e educação. A ideia inicial era que a licença fura-teto fosse eternizada. Diante das críticas de que isso poderia resultar em irresponsabilidade fiscal, ele propôs a fixação de um prazo de quatro anos para a licença, equivalente ao mandato presidencial. Não deu certo.

MAU INÍCIO - Lula, ao lado de Tebet: retirada de oito empresas da lista de privatizações, entre elas Petrobras e Correios -
MAU INÍCIO - Lula, ao lado de Tebet: retirada de oito empresas da lista de privatizações, entre elas Petrobras e Correios – (Ricardo Stuckert/.)

Os senadores reduziram o prazo para dois anos e depois os deputados encurtaram o prazo para um ano, o que acabou prevalecendo. A decisão garantiu tranquilidade a Lula para iniciar o mandato, mas, ao mesmo tempo, fixou um período de tempo para que ele apresente uma nova âncora fiscal e, com ela, explicite o seu nível de comprometimento com a saúde das contas públicas. Até agora, no entanto, ninguém sabe o que será feito. Ao tomar posse no Ministério da Fazenda, Fernando Haddad até anunciou boas intenções, mas pecou pela falta de detalhes e — até aqui — de força para emplacar suas ideias. “O arcabouço fiscal que pretendemos remeter para o Congresso terá a premissa de ser confiável e demonstrar tecnicamente a sustentabilidade das finanças públicas. Um arcabouço que abrace o financiamento do guarda-chuva de programas prioritários do governo ao mesmo tempo que garanta a sustentabilidade da dívida pública”, declarou o ministro. “Não existe mágica, não tem bala de prata nem malabarismos financeiros”, acrescentou. Ministro da Casa Civil, Rui Costa também entrou em campo para tentar amenizar os estragos decorrentes dos discursos presidenciais e de outros colegas de Esplanada, como o ministro Carlos Lupi, que saiu dando declarações estapafúrdias sobre as contas da Previdência no país. Além de negar a intenção de reverter a reforma, Costa disse que a responsabilidade fiscal e a responsabilidade social não são antagônicas, mas complementares. A primeira, observou o ministro, viabiliza a segunda.

Rui Costa tem razão — e fica a torcida para que suas ideias nessa área sejam ouvidas neste governo. A mistura de irresponsabilidade fiscal com populismo costuma resultar num desastre que começa com aumento da inflação, descamba para juros altos e endividamento público e termina em queda do investimento, do emprego e da renda. Resultado: mais pobreza, justamente a chaga secular que Lula pretende erradicar. Um número exemplifica bem o tamanho da encrenca. Boletim do Banco Central de dezembro passado estima que o aumento de 1 ponto porcentual na taxa básica de juros tem um impacto na dívida líquida do setor público de 38 bilhões de reais, mais da metade do valor usado para bancar a ampliação do Bolsa Família em 2023. “Precisamos voltar a ter confiança fiscal. Com ela, você resolve os problemas básicos”, diz Henrique Meirelles, presidente do Banco Central nos dois primeiros mandatos de Lula e ministro da Fazenda na gestão de Michel Temer. Ciente de seu papel estratégico, Haddad pretende anunciar em breve, antes da apresentação do novo arcabouço fiscal, medidas para melhorar a situação dos cofres públicos. Estão em estudo, por exemplo, a revogação de desonerações tributárias, a revisão de gastos, para acabar com desperdícios e pagamentos desnecessários, e um corte substancial em despesas de custeio da máquina.

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RETROCESSO - Reunião de sindicalistas: a revisão da reforma trabalhista parece ser uma das prioridades do governo -
RETROCESSO - Reunião de sindicalistas: a revisão da reforma trabalhista parece ser uma das prioridades do governo – (Rogerio Cavalheiro/Futura Press)

O receituário mostra um bom caminho. O problema da equipe técnica é ganhar a queda de braço com a ala política do governo. Na transição, Haddad combinou com Paulo Guedes o fim da desoneração dos combustíveis ainda em 2022. A bondade, se for mantida para os casos da gasolina e do diesel durante todo o ano de 2023, deve tirar mais 50 bilhões de reais dos cofres públicos. Para evitar o aumento do preço na bomba logo no início de seu mandato, sempre de olho na plateia e não nos cofres do Tesouro, Lula desautorizou o ministro e definiu a manutenção da desoneração por dois meses. Haddad ainda tentou um prazo menor, de um mês, mas não conseguiu. Na relação entre os dois, por enquanto, a regra é clara: o presidente manda, ele obedece. A palavra final sobre assuntos econômicos parece ser sempre de Lula.

O fato é que o episódio insinuou uma mensagem: a busca por equilíbrio fiscal está em segundo plano, totalmente sujeita a conveniências políticas e ao populismo. De uma maneira geral, os principais ruídos na área econômica tem acontecido por falas e ações do próprio presidente da República. Lula repetiu que quer revisar a reforma trabalhista, ideia absolutamente anacrônica, mas que foi imediatamente replicada pelo ministro da área, Luiz Marinho. Em paralelo, assinou uma medida provisória retirando da Agência Nacional de Águas (ANA) a atribuição de regulação no caso de saneamento, o que deixou apreensivos empresários interessados em investir no setor. O governo, por enquanto, recuou da medida. O presidente ainda disse que acabaria com as privatizações e mandou retirar oito empresas da lista de companhias que poderiam ser negociadas. Entre elas, Petrobras e Correios. “O mercado é um sistema de comunicação muito rápido. Se você emite uma sinalização de que o governo tem restrições, de que o governo não vai privatizar, obviamente você cria insegurança jurídica”, diz Fernando Schüler, professor de ciência política do Insper e colunista de VEJA. “Agora, o governo não deixou claro exatamente o que ele chama de privatizações. Existem mensagens contraditórias”, complementou.

ERRO COMPROVADO - Obras públicas: intervencionismo como fórmula para induzir crescimento -
ERRO COMPROVADO - Obras públicas: intervencionismo como fórmula para induzir crescimento – (Tais Peyneau/Agência Petrobras/.)

A aparente contradição fica clara quando se ouve o novo chefe da Casa Civil. Ex-governador da Bahia, Rui Costa é um entusiasta do investimento privado. Ele alega ser necessário expandir o investimento público, como prega Lula, mas acrescenta ser fundamental estimular concessões e até mesmo parcerias público-privadas, as PPPs, que jamais foram realizadas pelo governo federal. Além de um pacote de concessões em diferentes áreas de infraestrutura, como as realizadas com sucesso no caso dos aeroportos em gestões anteriores (leia a reportagem na pág. 60), Costa quer fechar parcerias com empreiteiras que firmaram acordos de leniência no âmbito da Operação Lava-Jato. A ideia é que essas empresas, desde que haja aval do Ministério Público Federal, da Controladoria-Geral da União (CGU) e do Tribunal de Contas da União (TCU), possam pagar parte de suas dívidas bilionárias terminando obras inacabadas. “A palavra de ordem é crescer para melhorar renda e gerar emprego. Para crescer, é preciso retomar investimentos, investimento público direto, mas também dar celeridade a projetos de concessão e licenciamentos e outorgas que possam ser tocadas pela iniciativa privada”, declarou o ministro da Casa Civil.

O desafio, mais uma vez, é conciliar o plano da área técnica com as ideias do presidente. No discurso ao Congresso, Lula destacou a intenção de usar bancos públicos e estatais como dínamos da atividade econômica. Em passado recente, essa iniciativa resultou num desastre. Empresas como a Petrobras foram enredadas em monumentais esquemas de corrupção, e os empréstimos camaradas do BNDES para fomentar a política de campeãs nacionais provocaram imensos escândalos. Nada garante que isso ocorrerá novamente, é verdade. As promessas são de moralidade no trato da coisa pública e de rechaço à concessão de juros para lá de subsidiados a grandes companhias. Mas falta um esclarecimento detalhado do que Lula realmente pensa a respeito desses temas e o que ele pretende, de fato, fazer. Pouco foi dito até agora (e o que foi, infelizmente, não agradou).

ROMBO - Caminhoneiros: para evitar desgaste, o governo prorrogou redução de impostos sobre os combustíveis -
ROMBO - Caminhoneiros: para evitar desgaste, o governo prorrogou redução de impostos sobre os combustíveis – (Caio Guatelli/AFP)

Único brasileiro a conquistar três vezes a Presidência, Lula venceu a eleição embalado por uma frente ampla, com representantes da esquerda, do centro e até de setores da direita, que compartilhavam do propósito de defender a democracia brasileira e derrotar Jair Bolsonaro. Uma proposta de política econômica não unia o grupo na campanha — nem foi objeto de debate entre os diferentes atores. Muitos deles, após os discursos de Lula já como presidente, mostraram-se preocupados com a possibilidade de uma recaída populista, provavelmente acompanhada de irresponsabilidade fiscal e de suas notórias consequências, como inflação e juros altos. Seria terrível para a economia — e, principalmente, para os mais pobres, que perderiam emprego, renda e dependeriam ainda mais da ajuda oficial para sobreviver. Pelo visto até aqui, Lula 1 tem muito a ensinar a Lula 3.

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Publicado em VEJA de 11 de janeiro de 2023, edição nº 2823

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