Um dos alicerces que sustentam as democracias liberais é a separação entre Igreja e Estado. O conceito, que revirou a ordem estabelecida, até então cimentada na interferência explícita da religião nos rumos das nações, nasceu nas revoluções burguesas dos séculos XVII e XVIII e ganhou força de lei na primeira emenda à Constituição dos Estados Unidos, em 1791. Ali se estabeleceu uma espécie de muro para apartar claramente duas das mais relevantes instituições das sociedades a favor da união de todos em torno da identidade nacional. A engenhosidade do modelo fez com que ele se espalhasse por quase todo o Ocidente, inclusive o Brasil, onde a Constituição de 1891 estabeleceu nítida divisão entre fé e poder, tema da Carta ao Leitor desta edição.
Esse marco civilizatório, no entanto, vê-se aqui, nesta antevéspera de eleição presidencial, mais ameaçado do que nunca. Ao repetir à exaustão que Deus está “acima de todos”, o presidente Jair Bolsonaro inflou o fervor com que o rebanho evangélico defende um governo regido pela intervenção divina e despertou um exército de influenciadores dispostos a tudo para garantir sua reeleição.
Por mais que seja garantida pela lei, a divisão Igreja-Estado, na prática, nem sempre é respeitada, inclusive nos pioneiros Estados Unidos, onde In God We Trust (“Em Deus nós confiamos”) é lema oficial e aparece impresso nas cédulas de dólar. No Brasil, a fronteira sempre foi atravessada por crucifixos nas instituições públicas, missas em eventos oficiais e uma discreta, mas potente pressão da Igreja Católica em torno de seus dogmas. As eleições do século XXI introduziram na receita o eleitorado evangélico, barulhento, com feições próprias e em franca expansão — atualmente, é representado por 183 deputados, dos 513 da Câmara, que compõem a Frente Parlamentar Evangélica (FPE). Esse grupo frequentemente se instala ao lado do presidente que se declara católico, mas vive aparecendo em cultos e marchas por Jesus (nove só no último mês). No cenário político polarizado de hoje, em que o debate de propostas é sufocado pelo debate ideológico, pastores e blogueiros de igrejas dedicam-se de corpo e alma a ajudar Bolsonaro a diminuir a distância de Luiz Inácio Lula da Silva nas pesquisas.
Levantamento realizado com exclusividade para VEJA pela Casa Galileia, instituto que promove estudos e iniciativas para fortalecer a democracia entre católicos e evangélicos, mapeou o perfil dos influenciadores religiosos que mais se envolvem na campanha de reeleição de Bolsonaro e mais provocam apoio em seu público. Os resultados são impressionantes. Os dez perfis evangélicos com mais engajamento do Brasil, cujos titulares ilustram as páginas desta reportagem, têm 105 milhões de seguidores no YouTube, Facebook e Instagram e as interações, na forma de compartilhamento, comentários e likes, passaram de 180 milhões nos últimos oito meses — uma média de 22,8 milhões por mês. No topo da lista figura o pastor Antonio Junior, da Igreja Batista Reformada Aliança do Calvário, que, no afã de atrelar ser cristão a ser eleitor de Bolsonaro, computa mais de 56 milhões de respostas de seguidores à sua pregação. Em seguida vem o pastor Deive Leonardo, da “independente” Reviver, com 17 milhões de interlocuções, prova do alcance de sua franca defesa de um Estado atado umbilicalmente à igreja.
No ranking repleto de desconhecidos do grande público, uma das exceções é o quarto lugar, de Damares Alves, ex-ministra da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, hoje candidata a senadora e uma potência nas redes sociais evangélicas. “Eu sou pop. Sou a rainha das tias do zap. Esses meninos todos aprenderam comigo”, declara, sem falsa modéstia. Famoso em seu meio, o pastor André Valadão (sétimo lugar), à frente da Igreja Batista da Lagoinha, que tem sede em Belo Horizonte, recebeu recentemente Jair e Michelle Bolsonaro no púlpito e bradou “O Brasil é do Senhor Jesus”, enquanto abençoava o casal. “Trata-se de uma ala religiosa rompida com a defesa do Estado laico. Ela quer participar do poder por meio da influência da fé na promoção de políticas públicas conservadoras”, diz Flávio Conrado, doutor em antropologia pela UFRJ.
Dispondo de linha direta com o universo evangélico, que reúne entre 27% e 31% do eleitorado e que pode ser decisivo nas urnas, os influencers da linha pentecostal inundam as redes de alertas para a “ameaça da esquerda”, uma expressão vaga que engloba legalização das drogas e do aborto e extinção dos valores tradicionais e da família cristã (composta de homem e mulher), entre outros “perigos” de inspiração supostamente satânica. Tem dado resultado. A diferença entre os dois candidatos nessa fatia do eleitorado, que segundo o Datafolha era de apenas 3 pontos porcentuais em maio, saltou para 17 a favor de Bolsonaro em agosto. Foi o segmento que mais se movimentou, contribuindo decisivamente para um aumento de 5 pontos nas intenções de voto no presidente entre o público em geral, enquanto Lula permaneceu estável (veja o quadro). “Nas eleições passadas, 70% dos evangélicos votaram em Bolsonaro. Reconquistar esse voto agora pode garantir que haja segundo turno”, avalia Felipe Nunes, diretor do instituto de pesquisas Quaest.
Um dos motores da popularidade de Bolsonaro entre os evangélicos atualmente é sua mulher, Michelle, devotíssima integrante da igreja batista Atitude, com sede no Rio de Janeiro, que demorou a entrar em cena — mas, quando entrou, produziu barulho. Michelle começou a fazer pequenas pregações quando frequentava a Assembleia de Deus Vitória em Cristo, do pastor Silas Malafaia, onde realizava trabalho voluntário, e foi ganhando desenvoltura para falar a públicos maiores. Em seu primeiro discurso de campanha, afirmou que o Planalto, antes do expurgo espiritual bolsonarista, “era um lugar consagrado a demônios”. “Ela nos surpreendeu, falou de improviso e deixou o PT desesperado”, exagera Sóstenes Cavalcante, deputado federal (PL-RJ) e presidente da Frente Parlamentar Evangélica. A primeira-dama seria a arma nada secreta para o presidente se tornar mais palatável ao eleitorado feminino, onde patina. O foco de sua atuação está nas mulheres com renda até dois salários mínimos, a maior parte negra, que seguem religiões evangélicas mas nutrem uma imagem positiva da gestão petista por causa dos programas de ajuda financeira.
Michelle ainda não chega a ser um fenômeno nas redes — tem 3,3 milhões de seguidores no Instagram —, mas tem potencial para saltos extraordinários: no mês em que fez o discurso sobre os demônios conquistou 160 000 novos fãs. Os influenciadores digitais bolsonaristas, ao mesmo tempo que apresentam a primeira-dama como modelo de fé, contrapõem a ela a mulher de Lula, Rosângela da Silva, a Janja, associando-a a práticas “diabólicas” — no caso, uma alusão às religiões africanas, em flagrante preconceito e desafio à saudável laicidade do Estado. Grupos de WhatsApp das igrejas pentecostais viralizaram um tuíte em que Janja diz estar com saudade de “vestir branco e girar, girar, girar”, como nos ritos do candomblé. Também houve compartilhamento massivo de Lula recebendo um “banho de pipoca”, outro ritual dos terreiros.
A guerra santa virtual, como não podia deixar de ser, tornou-se uma poderosa máquina de disseminação de fake news. Sem nenhuma prova concreta, Marco Feliciano, pastor e deputado federal (PL-SP), espalhou que Lula pretendia, se eleito, fechar as igrejas evangélicas, inverdade que circula até agora nas redes. Outra ilação marcofeliciana é a de que, em um governo petista, o destino dos fiéis da sua igreja é a cadeia. “Em um ato com a presença de Lula na USP, chamaram as igrejas de máfia e ele não nos defendeu. Se para eles somos mafiosos, só podemos pensar que nos prenderão caso voltem ao poder”, concluiu. (A título de esclarecimento: na ocasião, a urbanista Ermínia Maricato afirmou que as periferias das grandes cidades estão “dominadas por igrejas que fazem parte de uma máfia”). Na mesma linha, correm soltas imagens de Lula com Daniel Ortega, o ditador da Nicarágua que recentemente prendeu um bispo católico. “É na eleição que o pau come”, diz Malafaia, pastor com 8,5 milhões de seguidores em três redes monitoradas. “A esquerda nos ataca e quer que fiquemos quietos?”
Do outro lado da trincheira, a estratégia petista para responder à cruzada evangélica ensaia sair da defensiva. Inicialmente, Lula limitou-se a repetir que não era candidato de uma “facção religiosa” e recorreu à linguagem bíblica para alfinetar Bolsonaro, comparando-o aos fariseus. “Lula resiste a entrar em templos ou misturar comício com pregação. Mas existe, sim, uma preocupação com o impacto nas urnas do eleitorado evangélico, em sua maioria conservador”, diz um integrante da coordenação da campanha. Para rebater o exército digital adversário, Lula gravou um vídeo, a ser exibido no horário eleitoral e comerciais, negando que vá fechar igrejas, acompanhado de depoimentos positivos de mulheres evangélicas.
O partido, que nas eleições presidenciais de 2002 e 2006 esteve muito próximo dos evangélicos, desenvolveu agora sites exclusivamente voltados para os fiéis pentecostais, em que veicula mensagens afirmando que Lula jamais perseguiu os cristãos. Católico fervoroso com boa interlocução entre os pastores, Geraldo Alckmin, candidato a vice, foi escalado para ajudar a minimizar os estragos e tem mandado vídeos para os líderes religiosos realçando os pontos fracos do governo Bolsonaro, como o desemprego e a inflação alta. Outro reforço de peso é o pastor Paulo Marcelo Schallenberger, um dos poucos da Assembleia de Deus a debandar para a esquerda. Ele está insistindo na realização de um ato religioso com a presença de Lula. “Temos de cantar louvores e falar uma linguagem que o público evangélico entenda”, alega.
O caminho para a redenção, porém, é cheio de percalços. O maior é a mitologia bolsonarista de que seu candidato é ungido pela graça divina. “Bolsonaro explora a idewia, muito disseminada entre os evangélicos, de que Deus capacita os escolhidos e ele é um deles”, explica Lívia Reis, antropóloga e pesquisadora da UFRJ e do Instituto de Estudos da Religião. Se o eleitorado evangélico em peso estiver crente em outubro de que Deus é por Bolsonaro, quem será contra ele?
Com reportagem de Duda Monteiro de Barros
Publicado em VEJA de 31 de agosto de 2022, edição nº 2804