A década de 2010 foi marcada pela ascensão do populismo de direita no mundo, incluindo o Brasil, onde o movimento levou ao poder um azarão em 2018, o deputado federal Jair Bolsonaro. Antes, em 2016, nos Estados Unidos, o mesmo tipo de descontentamento com o establishment político havia colocado na Casa Branca o bilionário e controvertido empresário Donald Trump, um estreante em eleições. Enredos semelhantes foram vistos em países da Europa, como Itália, Polônia e Hungria. O fenômeno também esteve por trás da agitação que produziu o Brexit, a saída do Reino Unido da União Europeia. Mas esse movimento que parecia fadado a se expandir com velocidade ainda maior sofreu um primeiro revés significativo, na forma da derrota de Trump na eleição de novembro de 2020. Marcada pelas cenas condenáveis de seus apoiadores invadindo o Capitólio, sede do Congresso, na última quarta-feira, 6, para impedir a certificação da vitória do democrata Joe Biden, a queda do líder americano acendeu o sinal amarelo para o futuro desse neopopulismo.
A desgraça de Trump começou com o avanço de uma nova doença que corroeu rapidamente sua popularidade. No começo de 2020, o republicano aparecia como favoritíssimo à reeleição. Boa parte de sua derrocada pode ser creditada à postura equivocada e irresponsável diante da ameaça do coronavírus, uma conta que pode ser paga também por outros líderes. Em Nova York, dois meses antes das eleições americanas, em uma Assembleia-Geral da ONU esvaziada pela pandemia, veio do secretário-geral, o português António Guterres, o alerta: “Devemos ser guiados pela ciência e amarrados à realidade. O populismo e o nacionalismo falharam. Essas abordagens para conter o vírus geralmente tornam as coisas piores”.
Sem citar nomes, a estocada de Guterres pareceu um puxão de orelha nos líderes que falariam depois — os presidentes do Brasil e dos Estados Unidos, países com mais mortos pela Covid-19. Em seu pronunciamento, gravado em Brasília, Bolsonaro ecoou ao mundo as sandices que os brasileiros já se acostumaram a ouvir: a acusações de politização da crise, a minimização da pandemia e uma menção honrosa à hidroxicloroquina. Na fala de Trump, da Casa Branca, ataques à China e à Organização Mundial da Saúde.
Repletos de obscurantismo, os discursos expuseram a incompetência com que dois dos principais líderes de direita do mundo conduziram o combate à maior crise sanitária em um século. O erro de minimizar a doença foi captado antes por líderes conservadores mais atentos, como o britânico Boris Johnson, que recebera a pandemia com o mesmo discurso negacionista. “Apertei a mão de todos”, chegou a dizer após ir a um hospital de infectados. Nem todos os políticos da frente populista aceitaram recuar. Até agora, por exemplo, Bolsonaro mantém o discurso negacionista mesmo com o país à beira das 200 000 mortes. Paradoxalmente, ele viu a popularidade aumentar, impulsionada pelo auxílio emergencial, e segue como favorito para 2022. “Há um descrédito da oposição, em especial da esquerda lulopetista, e esperança no campo econômico, apesar do coronavírus e de seus efeitos imediatos”, avalia o analista político peruano Álvaro Vargas Llosa, coordenador do livro El Estallido del Populismo (A Eclosão do Populismo), com textos de vários autores sobre a recente onda conservadora.
Mas há nuvens carregadas no horizonte bolsonarista. A incerteza sobre o que virá no lugar do auxílio emergencial, o recuo de 40% para 35% entre setembro e dezembro na taxa daqueles que consideram o seu governo ótimo ou bom, segundo o Ibope, e o desempenho pífio de quem ele apoiou nas eleições municipais colocam em dúvida a sustentabilidade dessa popularidade e criam alguma pressão sobre o presidente, ainda mais em um momento em que a recuperação econômica fica embaçada pelo atraso no início da vacinação, provocado em grande parte por sua própria postura.
Analistas ressaltam que, após a imunização da população, o debate pode até passar a ser apenas sobre economia, e o populismo tem a esperança de se beneficiar a médio prazo ao se contrapor ao suposto fracasso de políticas adotadas pelos moderados na crise sanitária. Bolsonaro, por exemplo, aposta que o eleitor reconhecerá que ele foi contra a paralisação da atividade econômica e que fez seguidos alertas sobre as consequências dessa estratégia. Na França, a líder da extrema direita, Marine Le Pen, continua sendo a maior adversária do presidente Emmanuel Macron, cuja condução do combate à Covid-19 recebeu críticas pelos seus efeitos econômicos.
Os sinais de dificuldades para os populistas vêm de várias partes. Viktor Orbán, primeiro-ministro da Hungria e outra referência de Bolsonaro, já enfrenta percalços: três institutos de pesquisa destacaram que em dezembro a oposição superou o seu partido na preferência do eleitorado pela primeira vez em dez anos. “Isso se deve principalmente ao impacto econômico do vírus e à percepção de que o governo não está lidando com a crise como deveria”, diz Tibor Zavecz, chefe da Zavecz Research. Na Polônia, o presidente Andrzej Duda, aliado de Orbán e de Bolsonaro, passou a pandemia se equilibrando entre o discurso contra imigrantes, gays e a imprensa e a criação de um polpudo programa de socorro financeiro a empresas e trabalhadores afetados pela Covid-19 — ainda assim, reelegeu-se com a margem mais apertada da história do país no pós-comunismo: 51% a 49%, contra o liberal Rafal Trzaskowski, prefeito de Varsóvia, reduto eleitoral da oposição. O fato é que a pandemia levou à lona o mais proeminente dos neopopulistas, Trump, e seus desdobramentos representam risco real àqueles que mimetizaram o seu comportamento. O cenário eleitoral pós-pandemia vai ganhando cada vez mais a cara de plebiscito sobre a crise sanitária.
Publicado em VEJA de 13 de janeiro de 2021, edição nº 2720