O Supremo intimidado
Ministros recebem ameaças de morte, são alvo de ataques, reforçam a segurança e alguns já consideram até a hipótese de abandonar a magistratura
No dia 27 de fevereiro, o decano do Supremo Tribunal Federal (STF), ministro Celso de Mello, abandonou seu estilo reservado e disparou uma mensagem de celular aos colegas. Prestes a completar trinta anos na Corte, ele dizia no texto ser alvo de “crime de opinião”, típico de “épocas de obscurantismo”. O desabafo era uma reação a um pedido de impeachment apresentado contra ele horas antes, na Secretaria da Mesa do Senado Federal, pelo fato de ter votado a favor da criminalização da homofobia. O pedido foi subscrito por onze deputados federais, dos quais dez eram filiados ao PSL, o partido do presidente Jair Bolsonaro. As hostes bolsonaristas deixavam claro que não aceitariam posições consideradas progressistas nem mesmo na mais alta instância do Judiciário. Era clara a tentativa de intimidação. Escreveu Celso de Mello na mensagem aos colegas: “Eis a que ponto chegaram o fanatismo, o obscurantismo, o fundamentalismo e o caráter profundamente retrógrado dos deputados de alguns partidos, como o PSL”.
“Eis a que ponto chegaram o fanatismo, o obscurantismo, o fundamentalismo e o caráter profundamente retrógrado dos deputados de alguns partidos, como o PSL.”
Celso de Mello, decano do STF
Os parlamentares também pediram o impeachment de outros três ministros pelo mesmo motivo: Edson Fachin, Alexandre de Moraes e Luís Roberto Barroso. O decano protestou na mensagem: “É crime de hermenêutica”. A VEJA, um de seus colegas, que pediu para não ser identificado, também externou preocupação: “Pedido de impeachment por crime de opinião? Isso é coisa da ditadura”.
O caso revela a amplitude do cerco ao Supremo, que começou com episódios de ministros hostilizados nas ruas e nas redes sociais, e agora chega abertamente ao Congresso. Diante de tais incidentes, a discreta ministra Cármen Lúcia só anda acompanhada de um segurança e decidiu viajar em avião comercial apenas em horários pouco concorridos. O ministro Ricardo Lewandowski evita aparições públicas. O ministro Marco Aurélio Mello foi aconselhado por familiares a tomar cuidado, “porque o STF é a bola da vez”. Já o tribunal ampliou seu aparato de segurança, com a compra de spray de pimenta, armas de choque e carros blindados. Os ataques verbais aos magistrados não são propriamente novidade. Desde o ano passado, o Ministério Público investiga ameaças feitas à ministra Rosa Weber depois que votou contra a soltura do ex-presidente Lula. A diferença agora é que as tentativas de intimidação se tornaram mais frequentes, contundentes e, aparentemente, mais organizadas.
“Os ataques vinham de longe, mas ainda não tinham se institucionalizado tanto, como agora com o mundo virtual. Todo mundo está incomodado porque a internet é terra de ninguém. O tribunal estava sem defesa”, declarou a VEJA um ministro, que pediu anonimato. No dia 14 de março, o presidente do STF, Dias Toffoli, ele próprio alvo de dois pedidos de impeachment, anunciou a abertura de um inquérito para investigar ameaças, ataques e denúncias caluniosas contra a honra e a segurança dos ministros e de seus familiares. A decisão levou em consideração um fato novo: por meio de redes sociais, o STF recebeu ameaças de morte contra um irmão de Dias Toffoli, José Eduardo, portador de síndrome de Down. Foi a senha para reagir à altura. Pela lei, cabe ao Ministério Público pedir a instauração de inquérito, cujo relator no STF é escolhido por sorteio. Dias Toffoli desconsiderou tais regras, abriu ele mesmo a investigação e designou o ministro Alexandre de Moraes, ex-secretário de Segurança Pública de São Paulo, para comandá-la.
“Essas acusações acabam incentivando pessoas perturbadas a dar facada, tiro. Não se pode permitir num país democrático como o Brasil, em que instituições funcionam há trinta anos, que, porque não se gosta de uma decisão, você prega o fechamento da instituição republicana, a morte de ministros, de familiares”, declarou Moraes. No Congresso os ministros do STF também estão acossados — e não apenas por meio dos pedidos de impeachment. A deputada Bia Kicis (PSL-DF) está recolhendo assinaturas para propor a revogação da PEC da Bengala, com o objetivo casuístico de abrir quatro vagas que seriam preenchidas pelo presidente Bolsonaro. No Senado, foi protocolado um pedido de criação da CPI da Lava-Toga para investigar os tribunais superiores, subscrito por 29 senadores, dois a mais que o mínimo necessário. O senador Alessandro Vieira (PPS-SE), autor da proposta, quer impor limites à mais alta Corte do país. “O STF pode tudo?”, questiona. Ele afirma que a varredura na vida dos ministros — da sua atuação jurídica às contas particulares — é uma demanda da sociedade.
O cerco ao Supremo já contou com o apoio do presidente Bolsonaro. Durante a campanha, ele defendeu o aumento do número de ministros do Supremo de onze para 21, como fez Hugo Chávez na Venezuela, a fim de colocar “dez isentos” na Corte. Isentos, no caso, seriam ministros que jamais votariam a favor da criminalização da homofobia, como fez o decano Celso de Mello, por exemplo. Já o deputado Eduardo Bolsonaro (PSL-SP), em tom entre jocoso e desafiador, declarou que bastariam um cabo e um soldado para fechar o STF. No governo, o presidente e o filho, ao que parece, assumiram posições mais moderadas, ao menos publicamente. Bolsonaro tem evitado entrar em rota de colisão com o STF — em um aceno, já afirmou, inclusive, que pretende consultar Dias Toffoli antes de tomar determinadas decisões. Eduardo também moderou o tom — o que não significa que os questionamentos cessaram. No dia 15, ele divulgou vídeo em que ressalta a insatisfação da sociedade com a decisão do STF de que a Justiça Eleitoral deve julgar crimes de corrupção e lavagem.
Integrantes do Judiciário podem ser investigados, condenados, impedidos e até presos. Tudo isso é do jogo. O que não é do jogo é lançar mão de propostas e investigações legislativas para degradar a Justiça e seus integrantes com o objetivo de manietá-los e subordiná-los a interesses políticos. No cerco ao STF, há jogadores de dois tipos: aqueles que se movem por razões republicanas e aqueles que agem por motivos espúrios. Nesse segundo grupo, destacam-se autoridades que não aceitam decisões do Supremo, mesmo que tecnicamente fundamentadas, quando são contrárias a suas bandeiras de campanha, suas convicções religiosas, sua visão de mundo. A VEJA, o ministro Marco Aurélio disse que pedir impeachment por discordar de um voto é pura intimidação: “É uma demonstração de inconformismo dos parlamentares. Eles têm de se conscientizar de que, depois que a maioria bate o martelo, você não tem a quem recorrer. Nem carta ao santo padre adianta”. É assim que funciona, pelo menos nas democracias.
Com reportagem de Marcela Mattos
Publicado em VEJA de 27 de março de 2019, edição nº 2627
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