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“O pessoal era guloso”

Gerente que distribuía a políticos propinas da Odebrecht conta que usava policiais nas entregas e coletava o dinheiro vivo com lojistas da 25 de Março

Por Eduardo Gonçalves Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO Atualizado em 4 jun 2024, 16h43 - Publicado em 19 out 2018, 07h00
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  • Em março de 2016, depois de passar dezessete meses negando enfaticamente qualquer participação no esquema do petrolão, a Odebrecht capitulou. A maior empreiteira do Brasil assinou um acordo com o Ministério Público e colocou 78 de seus executivos para revelar quais políticos subornou nos últimos trinta anos, quanto deu a cada um e a troco de quê. As delações atingiram 26 partidos e 415 nomes, inclusive o presidente da República, Michel Temer. Alguns dos acusados, como o ex-governador de São Paulo Geraldo Alckmin (PSDB) e o presidente da Fiesp, Paulo Skaf (MDB), foram rechaçados nas urnas. O ex-governador Marconi Perillo, além de perder o mandato no Senado, chegou a ficar preso por um dia. Outros, como o senador Renan Calheiros (MDB), se reelegeram com dificuldade. A ex-senadora Gleisi Hoffmann (PT-PR) preferiu abater suas ambições e concorreu, com sucesso, para a Câmara. Todos hoje são investigados em inquéritos. A história que ainda não havia sido contada em detalhes é como o dinheiro sujo da Odebrecht chegava às mãos de quem ela pretendia corromper.

    Essa brecha é agora preenchida por Edgard Augusto Venâncio. Por nove anos, ele foi gerente da Transnacional, empresa de transporte de valores que tinha em sua carteira de clientes os maiores bancos e redes de varejo do país. Já na lista dos fregueses clandestinos, de acordo com os delatores da Odebrecht, constavam nomes de alguns dos mais notórios políticos brasileiros, entre eles próceres de quatro dos principais partidos nacionais. Era a turma das “entregas especiais”, como era chamada internamente a atividade de distribuição de propina.

    Edgard Augusto
    Edgard  Venâncio, ex-gerente da Transnacional  (//Arquivo pessoal)

    Venâncio, que desde novembro do ano passado já foi chamado quatro vezes para prestar depoimento na Lava-Jato, contou a VEJA como fazia para juntar os valores a ser distribuídos a políticos que, em troca, se dispunham a canalizar para os cofres da empreiteira o dinheiro do contribuinte. Em seus depoimentos, ainda sob sigilo de Justiça, Venâncio afirmou que não sabia que o dinheiro que distribuía era propina e que só veio a descobrir a identidade de seus destinatários finais depois que a Lava-Jato veio à luz. “Eu só cumpria ordens, fazia o delivery, não sabia quem eram os receptores.” Venâncio falou aos investigadores na condição de testemunha e não de investigado, esclarece seu advogado, Marco Kojoroski. “Eram de dez a quinze entregas desse tipo por dia. Eles me ligavam, nervosos. Se atrasasse dez minutos, era uma crise. O pessoal era muito guloso”, disse.

    Os nomes de quem receberia as entregas, os valores e os endereços eram comunicados ao escritório da Transnacional em São Paulo pela sede da empresa, no Rio de Janeiro. Venâncio, então, repassava as ordens à equipe encarregada de coletar e distribuir o dinheiro. A equipe era formada por policiais militares da ativa e da reserva. A escolha desses profissionais se justificativa por dois motivos: além de terem autorização para andar armados, eles dificilmente eram parados por outros policiais e, portanto, evitavam ser flagrados com a dinheirama. Com as coordenadas em mãos, os policiais partiam para a “coleta”. As cédulas eram conseguidas inicialmente em estabelecimentos comerciais da Rua 25 de Março, no centro de São Paulo, conhecida por concentrar lojas que vendem produtos sem nota fiscal. O dono de um comércio que faz importações da China, por exemplo, dava dinheiro vivo a um intermediário ligado à Transnacional com o compromisso de receber o equivalente no exterior, acrescido das devidas “comissões”. O valor era depositado em contas mantidas em paraísos fiscais e lá ficava disponível para o comerciante. Segundo Venâncio, essa parte da operação se encontrava a cargo do advogado Rodrigo Tacla Duran, apontado como operador da Odebrecht. Tacla Duran é considerado foragido pela Justiça. Um dos comerciantes que forneciam à Odebrecht o dinheiro destinado aos políticos era o chinês Wu-Yu Sheng, chamado nas planilhas da empreiteira de “Dragão”. Ele também está foragido desde maio.

    Coronel Lima, Rodrigo Rocha Loures e Maristela Temer
    INDICIADOS Para a PF, empresas do coronel Lima receberam propina em troca de medida provisória. O dinheiro teria sido pedido pelo ex-assessor de Temer Rocha Loures (no centro) e usado, em parte, para reformar a casa de uma filha do presidente, Maristela (acima) (Jefferson Coppola/VEJA - André Coelho/Agência O Globo)

    O dinheiro coletado pelos policiais era mais tarde distribuído por eles nos endereços definidos pela matriz da Transnacional no Rio. Frequentemente, as remessas eram feitas em hotéis paulistanos, como o Palace Flat Moema. Em 2014, ano eleitoral, conta Venâncio, o volume de “entregas especiais” triplicou, a ponto de a empresa ter de providenciar quatro carros além dos dois já reservados para a finalidade. “Eu pedi mais estrutura porque não estava dando conta. Era muita entrega.”

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    Um exemplo de como se dava o delivery foi descrito no inquérito que investiga o presidente Michel Temer por recebimento de propina da Odebrecht. Uma das planilhas entregues por Venâncio à polícia informava três entregas ocorridas sucessivamente nos dias 19, 20 e 21 de março de 2014 — de 500 000, 500 000 e 438 000 reais, respectivamente. Os endereços marcados ao lado dos valores indicavam a Rua Juatuba, número 68, na Zona Oeste de São Paulo. Nesse endereço funciona a empresa Argeplan, de propriedade de João Baptista Lima Filho, o coronel Lima, amigo do peito de Temer. Em uma das entregas, o coronel Lima não soube apresentar a senha para o recebimento do dinheiro (era “águia”). Comunicado do contratempo pelo entregador, um funcionário de Venâncio relatou o fato à matriz carioca da Transnacional por Skype e pediu autorização para entregar o dinheiro ao coronel mesmo assim — foi autorizado. A conversa, gravada, também está nas mãos da polícia. Em 4 de setembro, mais um conhecido de Temer apareceu nas mensagens de Skype e nas planilhas da Transnacional. “Entregar 1 milhão. Senha morango. Rua Capitão Francisco Padilha, 90, Jardim Europa. Procurar José Yunes. Entre 14 e 16 horas.” A entrega foi feita em duas viagens ao advogado, amigo de longa data de Temer e ex-­assessor da Presidência da República José Yunes. O inquérito do caso está paralisado desde setembro, porque os fatos remetem ao fim de 2014, quando Temer ainda era vice-presidente de Dilma Rousseff. A Constituição proíbe que se responsabilize um presidente por atos anteriores ao mandato.

    Mas a mesma sorte não teve o emedebista no chamado “inquérito dos portos”. A investigação apura se Temer recebeu 5,9 milhões de reais de propina em troca da edição, em maio de 2017 (portanto, quando já era presidente), de um decreto que beneficiava empresas ao prorrogar de 25 para 35 anos concessões do setor. Na última terça-feira, Temer foi indiciado pelos crimes de corrupção, lavagem de dinheiro e formação de quadrilha, junto com sua filha Maristela Temer, o ex-auxiliar Rodrigo Rocha Loures e o coronel Lima. Segundo a PF, parte do dinheiro da propina foi usada em uma reforma na casa de Maristela, feita por uma das empresas do coronel Lima.

    Como os demais políticos citados nas delações da Odebrecht, Temer nega as acusações da empreiteira. No seu caso, ele terá a chance de contestar todas elas a partir de 1º de janeiro, quando descerá a rampa do Planalto — e passará a enfrentar as barras dos tribunais como um cidadão comum.

     


    Michel Temer

    Michel Temer
    (Cristiano Mariz/VEJA)
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    Amigos do presidente, o coronel Lima e o advogado José Yunes receberam quatro remessas, num total de 2,4 milhões de reais, em 2014. O delator Claudio Melo Filho disse que o destinatário final do dinheiro era Temer


    Geraldo Alckmin

    alckmin
    (Ueslei Marcelino/Reuters)

    Sebastião de Castro, próximo do então tesoureiro da campanha do ex-governador tucano, recebeu três remessas, num total de 1,5 milhão de reais, em 2014. O delator Benedicto Barbosa Jr. disse que o dinheiro era para a campanha de Alckmin


    Paulo Skaf

    Paulo Skaf
    (Werther Santana/Estadão Conteúdo)
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    Paulo Rossi, dono de empresa contratada pela campanha de Skaf ao governo de São Paulo em 2014, recebeu duas remessas, num total de 1 milhão de reais. O delator Marcelo Odebrecht disse que o dinheiro era para a campanha de Skaf


    Gleisi Hoffmann

    Gleisi Hoffmann
    (Pedro Ladeira/Folhapress)

    Escritório de marketing contratado pela campanha da senadora foi apontado como endereço de três entregas, num total de 1 milhão de reais, em 2014. O delator Benedicto Barbosa Jr. disse que o destinatário final era Gleisi


    Marconi Perillo

    Marconi Perillo
    (Pedro Ladeira/Frame/Agência O Globo)
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    Casa do filho de Jayme Rincón, tesoureiro da campanha do tucano ao governo de Goiás em 2014, foi local de uma entrega de 1 milhão de reais naquele ano. O delator Fernando Reis disse que o destinatário final do dinheiro era Perillo

     

     

    Publicado em VEJA de 24 de outubro de 2018, edição nº 2605

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