O PT realizou um encontro em São Paulo com lideranças evangélicas simpáticas à sigla, no mês passado. Nas palavras da deputada federal Benedita da Silva (PT-RJ), fiel da Assembleia de Deus, era a reunião dos “PTcostais”. Duas horas de debate culminaram em mais um diagnóstico sobre a derrota do partido em 2018: a força que conduziu Jair Bolsonaro ao Planalto não foi o antipetismo, mas a adesão que o candidato do PSL obteve junto aos evangélicos. A análise é duvidosa na primeira parte — só o PT não admite que o antipetismo pesou na eleição —, mas acerta na segunda. “O voto do eleitorado das grandes periferias urbanas, em grande medida neopentecostal, migrou para Bolsonaro”, disse Lúcio Centeno, secretário da Frente Brasil Popular, do PT, na ocasião.
A reunião de variadas denominações que se abrigam sob a categoria geral “evangélico” ainda é a segunda religião do país, com 22% da população, segundo o último Censo do IBGE. Os católicos são 64%. Outros institutos de pesquisa, como o Datafolha, dizem que os evangélicos já representam um terço da sociedade. Estimativas sugerem que os católicos ainda terão mais seguidores por um bom tempo — mais de uma década. Os evangélicos, no entanto, representam uma força política decisiva em eleições majoritárias. Consagraram Jair Bolsonaro e não se desapontaram. Uma pesquisa do Instituto Ideia Big Data revela que os evangélicos seguem felizes com o presidente (veja o quadro): mais da metade afirma que o governo Bolsonaro está atendendo ao que era esperado dele, e 22% dizem até que ele supera expectativas. São números surpreendentes quando se considera que, na população em geral, Bolsonaro perdeu popularidade rapidamente. Especialistas acreditam que o fenômeno ocorreu porque o eleitor evangélico foi mais convicto: votou não apenas contra o PT, mas a favor da agenda moral de Bolsonaro.
Declaradamente católico, Bolsonaro é o primeiro presidente eleito com a retórica evangélica pentecostal. Antes dele, houve dois presidentes protestantes — Café Filho (presbiteriano) e Ernesto Geisel (luterano), que não chegaram ao poder pelo voto direto e quase não falavam de religião. Bolsonaro há tempos cortejava os evangélicos com gestos de forte simbolismo. Em 2016, por exemplo, foi batizado nas águas do Rio Jordão, em Israel, pelo pastor (e presidente nacional do PSC) Everaldo, da Assembleia de Deus. “A estratégia foi inteligente. Sendo católico e muito identificado com os evangélicos, ele conseguiu unir os dois polos. Talvez, se fosse só evangélico, não tivesse conseguido tantos votos dos católicos, e vice-versa”, avalia José Eustáquio Alves, professor da Escola Nacional de Ciências Estatísticas do IBGE. No segundo turno, os católicos dividiram-se quase meio a meio entre os dois candidatos, enquanto quase 70% dos evangélicos foram com Bolsonaro. Em números absolutos, porém, o voto católico ainda contou mais para Bolsonaro: foram quase 30 milhões, ante 21,5 milhões de votos evangélicos.
Os evangélicos vêm crescendo nas últimas décadas, e são mais ativos na política do que qualquer outro grupo religioso. Bolsonaro conseguiu, pela primeira vez, o apoio das maiores denominações do Brasil: entre elas, Assembleia de Deus, Universal, Batista e Quadrangular. A agenda moral de Bolsonaro contou bastante para a conquista do apoio de figuras célebres como Silas Malafaia, o mais eloquente e agressivo defensor das bandeiras religiosas conservadoras. O sociólogo da Universidade de São Paulo Ricardo Mariano, autor de Neopentecostais, diz que, desde a época da Constituinte, as lideranças evangélicas se apoiam na ideia de que suas igrejas estão sob ataque de adversários para defender a tese do “irmão vota em irmão”. “O argumento de que a liberdade religiosa está em xeque é um trunfo decisivo para defender candidaturas evangélicas nos próprios cultos”, diz Mariano.
Na média com menos instrução formal do que os católicos, os evangélicos pentecostais ainda compõem um contingente socialmente frágil, que sofre muito com a crise. A pesquisa da Ideia Big Data revela que 45% deles esperam que o governo dê prioridade à resolução dos problemas econômicos. A reforma da Previdência, carro-chefe do governo nessa área, divide o grupo: 35% contra, 35% a favor. Mais relevante é o contingente de 30% dos evangélicos que não sabem opinar a respeito. “Há uma desinformação generalizada nesse grupo que vem das classes mais baixas”, diz Maurício Moura, CEO do Ideia Big Data. “É uma oportunidade para o governo, pois essas pessoas podem ser convencidas.” Membros da oposição parecem ter vislumbrado essa oportunidade, mas sem saber exatamente como aproveitá-la. Gleisi Hoffmann, presidente do PT, no mês passado usou uma linguagem marcadamente religiosa para criticar as propostas do ministro Paulo Guedes: disse que a reforma da Previdência era um “pecado” e ainda sugeriu que Jesus foi crucificado porque “confrontou o templo, um sistema de dominação e exploração dos pobres”. A declaração repercutiu mal entre pentecostais e neopentecostais.
Os evangélicos frequentam mais seus templos do que os fiéis de outras religiões e chegam a doar seis vezes mais do que os católicos em dízimo. Buscam orientação de seus líderes para temas cotidianos — política inclusive. “As pessoas fazem escolhas baseadas nas redes sociais que constroem, seja na vizinhança, na internet ou, claro, na igreja. Se você obedece a uma autoridade espiritual, não há por que não ouvi-la nas orientações políticas”, diz Maria das Dores Campos Machado, professora da Universidade Federal do Rio de Janeiro especialista em sociologia da religião. A estudiosa considera que, embora os fiéis ainda estejam majoritariamente nas classes baixas, os evangélicos aos poucos vêm constituindo uma nova elite política e cultural. Estão presentes em cargos de liderança em todas as esferas da sociedade — há pastores e bispos nos legislativos municipais, estaduais e federal. Também vêm ocupando espaços no Judiciário, no empresariado e no showbiz, com a música gospel. A caminho de se tornarem a fatia mais numerosa da população, no futuro, podem pleitear que indicados seus entrem no Supremo Tribunal Federal — e já sonham, claro, com um candidato evangélico competitivo nas eleições presidenciais.
As forças da política brasileira cada vez mais precisarão mostrar sensibilidade aos anseios dos evangélicos — que em muitos pontos são os mesmos dos brasileiros de outras filiações religiosas. Aliás, ao contrário do que se concluiu no evento promovido pelo PT, o voto religioso nem sempre se distingue facilmente do voto antipetista: a pesquisa Ideia Big Data revela que 55% dos evangélicos são a favor da prisão de Lula.
Publicado em VEJA de 8 de maio de 2019, edição nº 2633
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