O PT entra nas eleições municipais com um desafio logístico-sanitário: como garantir a presença de Lula nas ruas sem a exposição aos riscos que a pandemia do novo coronavírus oferece para alguém de 74 anos e que já superou um câncer? A solução para alguns dirigentes do partido é improvisar uma espécie de “papamóvel”, o carrinho com proteção de vidro que o pontífice utiliza para circular em meio aos fiéis. A viabilidade da ideia está sendo discutida por petistas que atuam no núcleo eleitoral da sigla e será apresentada a Lula na segunda 5, na reunião semanal que ele faz para se inteirar do pleito deste ano. Carregar na campanha a imagem do ex-presidente representa outro desafio. Trata-se de um caso singular de bipolaridade política: Lula tem um peso enorme, mas há sérias dúvidas por parte dos correligionários a respeito da relação entre o custo e o benefício de empunhar nas eleições a bandeira de um político ficha-suja, justo no momento em que o partido precisa de renovação e alternativas para voltar a ser protagonista. Neste ano, o PT disputará a prefeitura de vinte capitais, deverá lançar mais de 20 000 candidatos a vereador por todo o Brasil e até desenvolveu uma estratégia digital em que fornece temas diários para os militantes compartilharem em grupos de WhatsApp com familiares e amigos. Nada disso, no entanto, consegue transcender o fardo que a imagem de Lula representa para o PT, tanto para o bem quanto para mal.
Existe ainda uma dificuldade adicional: o comportamento do experiente político, que muitas vezes prefere seguir seu instinto, ignorando o script combinado. Nas últimas semanas, por exemplo, o ex-presidente vinha sofrendo pressões de aliados para fazer um pronunciamento em que se opunha de forma mais contundente a Jair Bolsonaro, no momento em que o capitão teve a popularidade turbinada por eleitores pobres e nordestinos, antes fiéis ao petismo. Lula concordou, mas, sem avisar ninguém, praticamente se lançou candidato à Presidência em 2022 ao divulgar um vídeo no feriado da Independência. “Estou à disposição do povo brasileiro”, disse. Duas semanas depois, o PT veiculou um “plano de reconstrução nacional” que deverá embasar as propostas de governo que o partido apresentará na próxima eleição ao Palácio do Planalto. Em 200 páginas, a sigla propõe a recriação de ministérios e uma maior participação estatal na economia. Além dos anacronismos, o PT gasta longos parágrafos defendendo teorias da conspiração em que atribui as condenações de Lula na Justiça e o impeachment de Dilma Rousseff a conluios entre as elites brasileiras com os Estados Unidos. Lula, inclusive, permanece inelegível por já ter sido condenado duas vezes em segunda instância, mas a situação pode mudar caso o STF decida pela suspeição do ex-juiz Sergio Moro no processo do tríplex do Guarujá. Neste caso, a defesa do ex-presidente entraria com outro recurso para exigir também a anulação da sentença do sítio de Atibaia.
Ainda que a transmutação do líder de ficha-suja em ficha-limpa dependa de uma difícil reviravolta jurídica, a proliferação de candidaturas do PT nas eleições municipais tem o objetivo de já construir palanques para o lulismo daqui a dois anos. Dirigentes do partido dizem abertamente que a prioridade no pleito municipal é defender o legado dos governos petistas, tão arranhado pelas denúncias de corrupção que surgiram ao longo dos últimos anos. Em vídeos produzidos para os candidatos das capitais nordestinas, Lula utiliza apenas dez segundos dos quase dois minutos de filmagem para defender nominalmente os postulantes às prefeituras. O restante das produções — todas padronizadas — serve para que o ex-presidente fale sobre feitos da sigla em nível nacional.
A vida dos petistas não será nada fácil no pleito deste ano. O partido acredita que tem a condição de chegar ao segundo turno em apenas seis das vinte capitais que disputa: Rio Branco, Manaus, Goiânia, Fortaleza, Teresina e Recife. Nessas cidades, no entanto, as pesquisas mostram que a sigla só lidera o primeiro turno na capital pernambucana. Os números até aqui discretos são resultado da escolha feita pela direção nacional de lançar burocratas ou nomes já tarimbados em grandes polos eleitoreiros. No antigo “cinturão vermelho” de São Paulo, o berço do petismo, o partido apostou em veteranos como Luiz Marinho (São Bernardo do Campo), Emidio de Souza (Osasco) e Elói Pietá (Guarulhos). Em São Paulo, Jilmar Tatto patina ao ver o psolista Guilherme Boulos arrebatar os votos do petismo. No Rio de Janeiro e em Belo Horizonte, a sigla lançou a ex-prefeita Benedita da Silva e o ex-deputado Nilmário Miranda, respectivamente. “Essas não foram escolhas por opção, mas por falta delas”, afirma um cacique petista. O plano é que esses nomes usem suas campanhas para reafirmar conquistas do passado. “Junto aos convertidos, o apoio do Lula pode ser importante para segurar os que estão se desgarrando, mas isso pode não se estender à maioria dos eleitores”, diz o cientista político Rui Tavares Maluf. A necessidade de atrair os não convertidos ajuda a explicar por que candidatos do PT considerados favoritos em suas cidades têm optado por esconder símbolos do partido neste início de campanha. O caso mais gritante é o de Marília Arraes, líder de pesquisas no Recife. Ela trocou a estrela do PT por um coração, iniciou a campanha num bairro de elite e foi para as ruas sem a presença de bandeiras e usando uma camiseta verde. A mesma tática tem sido empregada em outras cidades, o que rendeu reclamações de quadros importantes no PT. Wadih Damous, um dos advogados de Lula, afirmou que os candidatos que esconderam o vermelho e o número 13 precisam ter vergonha na cara. “Oportunismo eleitoral e pusilanimidade não devem ter lugar no PT”, escreveu ele em seu perfil no Twitter.
Apesar da lista de problemas na Justiça, a influência política de Lula não pode ser desprezada. Em São Paulo, segundo pesquisa recente do Datafolha, o ex-presidente tem maior força eleitoral do que Bolsonaro e o governador tucano João Doria. Mas, curiosamente, isso ainda não foi capaz de impulsionar a candidatura de Jilmar Tatto na cidade. Com o ex-deputado registrando 2% das intenções de votos, os canhões verbais dos dirigentes partidários se voltaram contra Fernando Haddad. O candidato à Presidência em 2018 rejeitou os insistentes pedidos de Lula para se lançar novamente à prefeitura paulistana. A direção petista, capitaneada por Gleisi Hoffmann, promete cobrar uma fatura alta de Haddad caso o partido sofra uma derrota vexaminosa com Tatto. Haddad, por sinal, tem atuado discretamente até agora, inibido pela força que Gleisi consolidou junto a Lula após a sigla pôr tantas candidaturas de pé. Nas palavras de um importante dirigente petista, apesar de não se digladiarem publicamente, os dois agem nos bastidores como água e óleo e são incapazes de se misturar.
Para além dos resultados eleitorais que conseguir nos pleitos municipais, o PT terá de lidar com a animosidade de aliados históricos até 2022. A situação em Fortaleza, onde Lula bancou a candidatura da ex-prefeita Luizianne Lins, deixa evidente a tensão. A disputa pelo mesmo eleitorado do PDT, que tenta se manter no poder em um dos principais redutos do presidenciável Ciro Gomes, irritou o governador Camilo Santana (PT) e poderá até favorecer a candidatura do bolsonarista Capitão Wagner (Pros). Publicamente, Camilo permanecerá neutro no primeiro turno, mas sua preferência é por uma vitória do nome escolhido pelos pedetistas, o deputado estadual José Sarto. O pai do governador, Eudoro Santana, é um dos coordenadores políticos de Sarto e atua na formulação de seu plano de governo. Ao contrário de outros candidatos pelo Brasil, a esperança de Luizianne é que Lula participe ativamente de sua campanha, o que ainda não aconteceu. “A intransigência do PT em Fortaleza mostra a clara dificuldade que teremos para discutir um projeto nacional de esquerda em 2022”, diz o deputado federal André Figueiredo (CE), um dos caciques do PDT em nível nacional. Perto de encrencas como essa, construir um “lulamóvel” é o menor dos problemas do PT nesta eleição.
Publicado em VEJA de 7 de outubro de 2020, edição nº 2707