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O deputado que falava sozinho

Como as experiências na adolescência e no Exército ajudaram a forjar o ex-integrante do baixo clero da Câmara que virou presidente da República

Por Edoardo Ghirotto e Gabriel Castro
Atualizado em 30 jul 2020, 20h05 - Publicado em 29 out 2018, 07h00

Integrantes da fauna política da Câmara, sobretudo os que estão habituados a percorrer o Salão Verde seguidos por fileiras de assessores e jornalistas, costumam relegar ao isolamento a chamada cota folclórica da Casa — deputados que chamam atenção menos por seu trabalho parlamentar do que por sua imagem ou suas ideias consideradas caricatas ou francamente estapafúrdias. Tiririca, por exemplo, é visto quase sempre sozinho, sentado nas últimas fileiras do plenário. Sua única companhia parlamentar é o cantor sertanejo Sérgio Reis, outra figura deslocada da paisagem, e que não tentou a reeleição. Jair Bolsonaro, até recentemente, fazia parte dessa turma. No plenário, estava sempre imerso na tela do seu celular, sozinho ou na companhia do filho, o também deputado Eduardo Bolsonaro. Nunca foi visto jantando no Piantella nem tomando uísque no Churchill, o restaurante e o bar de Brasília onde os parlamentares mais enturmados costumam confraternizar. Em sete mandatos consecutivos, conseguiu aprovar apenas dois projetos e jamais deixou o Anexo 3, considerado a Sibéria da Câmara, por seus gabinetes apertados e sem banheiro. Jair Bolsonaro, em suma, passou quase trinta anos no Congresso como um indefectível membro do baixo clero: sem destaque, sem poder e sem uma turma para chamar de sua — características que acabou por transformar em ativos de campanha.

Ele entrou para a política menos por desejo ou vocação do que por necessidade. Em 1988, quando era capitão do Exército, recebeu de um colega a informação de que a instituição abriria nova investigação contra ele por um episódio que por pouco não resultara na sua expulsão, um ano antes: a revelação, feita por VEJA, de que ele e um colega haviam planejado explodir bombas numa adutora do Rio de Janeiro para forçar o comando do Exército a atender as reivindicações de aumento salarial da categoria. O processo terminou arquivado por insuficiência de provas, mas, diante da informação de que fatos novos poderiam reabri-lo, Bolsonaro preferiu não pagar para ver e deixou o Exército. Candidatou-se a vereador pelo Rio e resolveu que, na hipótese de não se eleger (para ele, a mais provável), iria trabalhar como limpador de casco de navio, aproveitando o curso de mergulho que fizera anos antes. Mas Bolsonaro acabou eleito pelo hoje extinto PDC e nunca mais vestiu a farda. Ficou dois anos na Câmara Municipal antes de vencer a primeira das sete eleições para deputado federal, em 1990. Em Brasília, continuou a atuar para agradar a sua base de apoio. Diariamente, lia os obituários dos jornais para verificar se havia algum militar entre os mortos. Se houvesse, enviava condolências à família do falecido.

Ao se apresentar como opositor do politicamente correto, ele ganhou publicidade gratuita nas redes sociais, e aproveitou a onda

Em 1993, já no PPR, enfrentou seu primeiro processo por quebra de decoro parlamentar ao defender em plenário o fechamento do Congresso. Outros seis viriam depois: por chamar o ex-ministro Luiz Carlos Bresser-Pereira de ladrão (1995), por afirmar que o presidente Fernando Henrique Cardoso merecia ser “fuzilado” (2000), por associar numa entrevista mulheres negras à promiscuidade (2011), por ter supostamente dado um soco no senador Randolfe Rodrigues (2013), por chamar a deputada Maria do Rosário de “vagabunda” e dizer que só não a estupraria porque ela “não merecia” (2014) e por homenagear o coronel e torturador Carlos Brilhante Ustra na votação pelo impeachment de Dilma Rousseff (2016). O caso de Maria do Rosário ecoa até hoje, e por causa dele Bolsonaro é réu em ações no Supremo Tribunal Federal (STF) pelos crimes de incitação ao estupro e injúria.

Jair Bolsonaro e o pai, Percy Geraldo, após um dia de pesca nas proximidades de Eldorado Paulista, onde era chamado de Palmito, por causa das pernas compridas e brancas (Álbum de família/.)

O deputado Bolsonaro deixou o ostracismo em 2011, quando encabeçou a oposição parlamentar ao que batizou pejorativamente de “kit gay”, material escolar idealizado pelo então ministro da Educação de Dilma, Fernando Had­dad, para debater sexualidade nas escolas. Ao se apresentar como feroz adversário do movimento em defesa de questões identitárias e do politicamente correto, ganhou publicidade gratuita nas redes sociais, tanto de usuários que compartilhavam da sua revolta quanto dos que começavam a se indignar com seus vitupérios. O deputado soube aproveitar a onda — não recusava entrevistas nem para trabalhos de conclusão de curso em faculdades. Da controvérsia sobre o “kit gay” surgiu o “mito”, como o chamam hoje seus mais empolgados seguidores na internet.

Bolsonaro nasceu no município de Glicério (SP), em 1955, mas foi registrado em Campinas e passou a maior parte da infância e adolescência em Eldorado Paulista, que fica no Vale do Ribeira, uma das regiões mais pobres do Estado de São Paulo. Sem indústria e com uma tímida produção agrícola, ela parece ter parado no tempo — a população continua do mesmo tamanho de quando o pai de Bolsonaro decidiu levar a família para lá. Percy Geraldo Bolsonaro viajava de cidade em cidade trabalhando como dentista prático, já que não cursara odontologia. Em 1961, resolveu fixar-se em Eldorado. A família Bolsonaro tinha uma vida modesta. Os seis filhos de Percy, três homens e três mulheres, frequentaram a escola pública. Bolsonaro, goleiro do time local, era conhecido como “Invertido”, pelo jeito desengonçado com que agarrava a bola, e “Palmito”, por causa das pernas compridas e brancas. Suas diversões preferidas eram matar passarinho com espingarda de chumbo e assistir aos filmes de Mazzaropi no cinema — o único vestígio de vida cosmopolita na cidadezinha, cercada pela Mata Atlântica.

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Na cerimônia do primeiro casamento, com a mãe de seus três filhos políticos, Rogéria Braga (Álbum de família/.)

Bolsonaro só saiu de Eldorado aos 18 anos, mas o município nunca saiu dele. Muitas de suas convicções parecem derivar das experiências que acumulou por lá. A própria escolha da carreira militar é consequência de um episódio marcante ocorrido na cidade em 1970. Naquele ano, o grupo do comunista Carlos Lamarca chegou a Eldorado e entrou em confronto com soldados locais. A troca de tiros se deu na praça em que ficava a escola de Bolsonaro. Ele se lembra de tê-la atravessado, junto com outros adolescentes e crianças, alguns rastejando em meio à fumaça e ao cheiro de pólvora. O tiroteio, que deixou uma mulher e seis soldados feridos, fez com que o Exército mandasse tropas para o Vale do Ribeira. Vistos como heróis na cidade, os militares passaram a receber em seu acampamento a visita constante do então jovem Bolsonaro — a partir daí determinado a ser um deles. Sua família se entusiasmou com a ideia. Não haveria mesmo muito futuro para o menino no comércio ou nas plantações de banana de Eldorado.

Nos tempos em que integrava o baixo clero e se inspirava no nacionalismo de Enéas Carneiro (Álbum de família/.)

Naquela época, existiam na região 66 áreas de quilombolas, ocupadas desde o século XVI. Na década de 70, ainda durante a ditadura militar, elas viraram patrimônio cultural, o que desagradou a agricultores que perderam terras cultiváveis. As demarcações feitas ao redor de Eldorado parecem estar na origem de duas ideias defendidas por Bolsonaro ao longo de sua vida pública: a de que as reservas indígenas prejudicam as populações em seu entorno e a de que os quilombolas são improdutivos. “Não fazem nada, acho que nem para procriadores servem mais”, disse Bolsonaro em abril. O comentário rendeu-lhe no STF outro processo — dessa vez, por racismo —, do qual escapou em setembro.

Imitando o gesto de disparar armas na votação do impeachment de Dilma Rousseff, depois de homenagear o torturador Brilhante Ustra (Cristiano Mariz/VEJA)

Já o interesse de Bolsonaro por minerais remonta ao tempo em que garimpou nas serras próximas ao município, seguindo o exemplo do pai. Há uma crença na região de que existe ouro na Mata Atlântica do Vale do Ribeira, e que as terras se tornaram “reservas legais” justamente para proibir a retirada do minério pela população local. É mais ou menos o mesmo raciocínio que Bolsonaro usa quando argumenta que a exploração das riquezas minerais deveria ser liberada para os brasileiros, antes que estrangeiros — sobretudo os chineses — se apoderem delas.

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Bolsonaro acalentava a ideia de candidatar-se à Presidência da República pelo menos desde 2014, quando apresentou a proposta ao seu então partido, o PP, que a rejeitou, preferindo apoiar a candidatura de Dilma Rousseff (antes de entrar no PSL, ele passou também pelo PTB, PFL e PSC). Naquele ano, o parlamentar sagrou-se o terceiro depu­tado mais votado do Brasil. Foi o primeiro indício de que o sujeito calado e solitário da Câmara tinha começado a colher os frutos das muitas horas que havia passado no fundo do plenário imerso na tela de seu celular.

A formação de uma gigantesca base de apoiadores que conquistou nas redes sociais — associada a outras práticas no mundo digital que estão sob investigação — foi fundamental para a sua transmutação de deputado nanico a presidente da República. A partir de 1º de janeiro, Bolsonaro passará a ter em quantidade o que nunca teve nem escassamente: poder, influência e uma turma para chamar de sua. Poderá usar desses trunfos para engrandecer a si mesmo e ao país que vai governar — ou apequenar a ambos.

Com reportagem de Nonato Viegas

 

Publicado em VEJA de 31 de outubro de 2018, edição especial nº 2606

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