Não adianta negar. Depois de alguma melhora nas estatísticas, a pandemia de Covid-19 está em fase de recrudescimento no Brasil. No último dia 7, foram registrados mais 84 977 casos da doença, novo recorde nacional. Já na terça-feira 12, a média móvel de mortes, que contabiliza o número de óbitos nos últimos sete dias, foi 49% maior do que a verificada duas semanas antes. Grandes cidades, como Manaus, voltaram a enfrentar dificuldades para atender a demanda por tratamento na rede pública de saúde (veja a reportagem na pág. 36). Há um pico de internações também em hospitais privados, como o Albert Einstein, em São Paulo, que nunca teve tantos pacientes infectados pelo novo coronavírus sob seus cuidados. Apesar da situação de emergência, o governo — que se define como defensor da família brasileira — ainda não sabe ao certo quando começará a campanha de imunização da população, mas pelo menos definiu a data que considera ideal para dar início à vacinação. Em reunião virtual com prefeitos, o ministro da Saúde, Eduardo Pazuello, informou que o “dia D” será na próxima quarta-feira, 20, caso a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) aprove o uso emergencial de vacinas disponíveis no país.
São dois os pedidos à espera de análise do órgão regulador. Um deles é para a aplicação da chinesa CoronaVac, produzida em parceria com o Instituto Butantan. O outro diz respeito à vacina da Oxford/AstraZeneca, que será desenvolvida no Brasil pela Fiocruz. Se não ocorrer nenhuma mudança no cronograma, a Anvisa vai decidir sobre os dois imunizantes no domingo 17, em sessão transmitida ao vivo pela TV estatal e pelos canais da agência na internet. A administração Bolsonaro comprou 2 milhões de doses da vacina da AstraZeneca, cuja eficácia varia de 62% a 90%, e pretende dar a largada na campanha de imunização preferencialmente com ela. O governo também está preparado para lançar mão da CoronaVac, mas, enquanto a campanha não começa, insiste em transformá-la em arma do embate político travado com o governador de São Paulo, João Doria, o principal defensor da vacina chinesa.
No último dia 7, Doria anunciou que a CoronaVac tinha uma eficácia de 78% para casos leves da doença. O tucano encarou o anúncio como uma vitória pessoal sobre Bolsonaro. Na terça-feira 12, instadas a prestar informações detalhadas sobre o imunizante, autoridades do governo paulista informaram que a eficácia geral era de 50,38%. Ou seja: um pouco acima do mínimo de 50% exigido pela Organização Mundial da Saúde (OMS) e pela própria Anvisa. Doria não apareceu na hora do anúncio. Foi a oportunidade de Bolsonaro tentar a desforra. “Essa de 50% é uma boa? Agora estão vendo a verdade. Estou (há) quatro meses apanhando por causa da vacina”, disse o presidente a apoiadores. Expoentes do núcleo mais ideológico do bolsonarismo engrossaram o coro nas redes sociais, entoando principalmente discursos anti-China. Tais manifestações não passam de jogo de cena, quase um teatrinho infantil. Por dois motivos.
Primeiro, porque o governo já acertou a contratação de 46 milhões de doses da CoronaVac, com o compromisso de, se necessário for, adquirir mais 54 milhões de doses. Segundo, porque a vacina, de acordo com especialistas, é segura, eficaz e deve ser aplicada o mais rapidamente possível. Cientistas afirmam que mesmo imunizantes com eficácia próxima ao mínimo exigido pela OMS são cruciais para a contenção da pandemia. “A diferença prática entre patamares de eficácia de uma vacina é que, quanto menor a eficácia, mais população precisa ser vacinada para evitar que o vírus circule. Por isso, temos de focar urgentemente em boas campanhas para a população aderir à vacinação”, diz a biomédica e doutora em neurociências Mellanie Fontes-Dutra. Para o médico e advogado sanitarista Daniel Dourado, pesquisador da Universidade de Paris, o índice de eficácia não deveria ser o foco de atenção dos governantes, mas sim a divulgação de campanhas de conscientização para que os brasileiros compareçam em massa às quase 40 000 salas de vacinação existentes no país. “Mais do que discutir eficiência, precisamos ter uma comunicação muito clara e direta com a população para que compreenda a importância de se vacinar. Focar patamares de eficácia ajuda os negacionistas a usar qualquer número que não seja 100% para questionar a importância de se vacinar”, declara Dourado. Ou seja: é mais importante ter uma vacina com eficácia menor, mas que seja aplicada à maioria da população, do que o contrário.
O Brasil, por qualquer ângulo que se olhe, está atrasado na corrida internacional por imunização. Cerca de cinquenta países já começaram a vacinar sua população. Entre eles, os vizinhos Argentina e Chile. Por aqui, a necessidade de uma campanha de convencimento sobre a vacinação é real. O negacionismo ainda é a tônica do governo. Numa solenidade no Palácio do Planalto, o presidente estava sem máscara, ao contrário da primeira-dama Michelle. Já os ministros se dividiram quanto ao uso do equipamento de proteção (os que querem agradar ao chefe não usam). O mesmo acontece no caso da vacinação. Bolsonaro disse que não pretende se vacinar, mas protegeu sua caderneta de vacinação com um sigilo de 100 anos. Já o vice-presidente, general Hamilton Mourão, em mais um contraponto necessário, afirmou: “A vacina é para o país como um todo, uma questão coletiva”.
VEJA perguntou a todos os ministros se pretendem se vacinar. Integrantes do núcleo mais ideológico, como Ernesto Araújo (Itamaraty) e Ricardo Salles (Meio Ambiente), não responderam. O general Augusto Heleno (GSI), que flerta com os radicais, seguiu a mesma linha, e não se posicionou sobre o tema: “É uma decisão pessoal e intransferível”. Um outro grupo de auxiliares se mostrou animado com a perspectiva de vacinação. Destaque para Tereza Cristina (Agricultura), Rogério Marinho (Desenvolvimento Regional) e Paulo Guedes, que considera a vacinação em massa a melhor maneira de reaquecer a atividade econômica. “Quero a vacina, e ela pode vir da Lua ou de Marte. Pode ser qualquer vacina aprovada”, disse Guedes, que, reservadamente, prefere imunizantes que tenham sido aprovados por órgãos reguladores ingleses e americanos.
No meio dos negacionistas e dos entusiastas estão os generais com gabinete no Palácio do Planalto, que pretendem se vacinar com o produto indicado pelo chefe. Os ministros militares têm um plano ambicioso: quando todo o processo burocrático e logístico estiver resolvido, querem convencer o presidente a se vacinar diante das câmeras, para dar o exemplo à população e reduzir a resistência à imunização, sobretudo entre seus apoiadores mais radicais. Segundo os generais, Bolsonaro ganharia em termos de imagem — e o país, em segurança sanitária. Não custa tentar.
Publicado em VEJA de 20 de janeiro de 2021, edição nº 2721