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Miguel Reale: ‘Não tenho dúvida de que o presidente cometeu crimes’

Para o jurista responsável pelos pedidos de impeachment de Collor e Dilma, no entanto, não é momento de iniciar essa discussão

Por Roberta Paduan Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO Atualizado em 31 mar 2020, 19h21 - Publicado em 31 mar 2020, 17h00

O jurista Miguel Reale Júnior foi co-autor dos dois pedidos de impeachment que resultaram na queda dos presidentes Fernando Collor de Mello, em 1992, e Dilma Rousseff, em 2016. Atualmente, Reale vem recebendo consultas “verbais e informais” de interessados em pedir um novo impedimento, o de Jair Bolsonaro. “Não tenho a menor dúvida de que, juridicamente, ele cometeu crime de responsabilidade e crime comum”, afirmou a VEJA o jurista, de sua casa em Canela, no Rio Grande do Sul. Segundo ele, no entanto, essa medida não deve ser considerada nesse momento. Além de o processo demorar muito, não se pode desperdiçar forças no combate à epidemia do coronavírus. “Bolsonaro usaria politicamente a ação, diria que é vítima de um golpe e colocaria suas tropas virtuais e reais na rua para dizer que só queriam o cargo dele”.

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A palavra impeachment era praticamente proibida, principalmente entre parlamentares e membros do Judiciário, mas começou a ser pronunciada nas últimas semanas, diante do comportamento do presidente Jair Bolsonaro na crise do novo coronavírus. Existem elementos para fundamentar um pedido de impedimento? Não tenho a menor dúvida de que juridicamente está caracterizada a afronta ao decoro, porque decoro engloba conduta, uma forma de comportamento que respeite as leis, que respeite o direito dos outros, que não deixe prevalecer os interesses pessoais de vaidade ou políticos sobre o interesse geral; decoro envolve compostura, ponderação. Há vários atos do presidente, ao longo do tempo, que ofenderam o decoro, como os insultos a jornalistas. Tudo isso configura quebra de decoro, mas o comportamento que ele vem tendo ao longo do mês de março, em relação à pandemia, é o mais grave de todos. O que ele fez nesse final de semana foi uma loucura. Aliás, eu já disse que o caso do Bolsonaro não é um problema de impeachment, mas de interdição (em que o Ministério Público pede que o presidente se afaste e seja submetido a um exame de sanidade mental). É um processo paranoico.

Mas quais são os fundamentos jurídicos para um pedido de impeachment? É preciso lembrar que decoro é também a análise de um comportamento ao longo do tempo. Em primeiro lugar, ele está infringindo todo um arcabouço jurídico criado para conter a epidemia. Existe uma declaração da Organização Mundial da Saúde (OMS), dizendo que o isolamento é a medida mais correta (para se tentar controla a pandemia). Em função dessa declaração da OMS, feita em janeiro, o Congresso fez rapidamente uma lei, a 13.979, que estabelece medidas a serem adotadas no país na luta contra o vírus. Ela prevê, entre outras medidas, a quarentena, a internação etc. Estamos falando de uma lei feita pelo Congresso e sancionada pelo próprio presidente. Depois, foi editada uma portaria do Ministério da Saúde, outorgando a estados e municípios a possibilidade de decretação de isolamento. Houve, ainda, uma portaria interministerial dos ministros da Saúde e da Justiça estabelecendo que quem desrespeitasse as normas de contenção da epidemia, praticaria o crime do artigo 268 do Código Penal, que é o de crime contra a saúde pública. A portaria interministerial define também que quem agir dessa forma está cometendo crime de desobediência. Ou seja, há todo um aparato legal estabelecido no sentido de se adotar medidas urgentíssimas e severas para proteger a saúde da população, e ele vai na contramão disso tudo por interesse pessoal?

O senhor acredita que seja por interesse pessoal? Sim! Vou lhe dar o exemplo de onde se extrai isso. Aquele dia em que ele foi ao Palácio da Alvorada cumprimentar as pessoas no domingo (15 de março, em que houve manifestações em apoio ao governo e contra o Congresso), ele disse uma frase que indica tudo: “Isso não tem preço”, referindo-se ao apoio da população que foi saudá-lo na frente do Palácio. Ele está na vanglória! Acha que o mito não pode ter vírus. Aí ele começa a minimizar aquilo que tinha sido considerado objeto de uma lei que estabeleceu quarentena. Ele está desrespeitando a lei. Isso é falta de decoro. E mais: está colocando a saúde da população em risco para a sua vanglória. Ele quer ser cumprimentado, ser abraçado, tirar selfie! Por outro lado, ele sabe que vem uma crise econômica por aí. Ele quer dar um jeito de jogar a culpa da crise econômica para cima dos governadores e prefeitos, mesmo ao preço de complicar a saúde da população.

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Mas isso pode ser visto como oportunismo, não acha? É oportunismo! É muito fácil dizer para as pessoas saírem para a rua. Ele está se aproveitando de uma população que é em grande parte sofrida, que está trancada em casa, apertada em pequenos cômodos, com as crianças, preocupada com o emprego, com as contas para pagar. É claro que as pessoas querem voltar à vida normal, querem garantir o dinheiro do mercado, do aluguel. É lógico que ele vai ser festejado pela população que quer liberdade. Quem não tem a capacidade de analisar a gravidade da situação e vê o presidente falando que é uma gripinha, pensa que estão exagerando. Isso é criminoso. Ele prefere jogar com esse tipo de comportamento, colocando em risco a saúde das pessoas, para salvaguardar o seu prestígio. Isso, evidentemente, lá na frente, pode também acabar com o cartaz dele, se começar a ter mortes e mais mortes. Mas ele não está preocupado com isso. Ele já disse que “morte vai ter”. Isso é a maior falta de sensibilidade com o seu povo. É falta de decoro mais profundo. Então, não há dúvida nenhuma do que está caracterizado, seja no Código Penal, no artigo 268, seja o crime de responsabilidade.

O senhor acredita que há ambiente para a abertura de um processo de impeachment? Tenho falado com muitas pessoas da classe política, e acho que a pergunta é outra: convém abrir um processo desse tipo? Creio que não. Eu recomendei a uma entidade profissional o caminho de representar ao procurador-geral da República para que ele avaliasse o crime do artigo 268, com o pedido de interdição, já que parece que é um caso de paranoia. Aparentemente, o PGR não vai aceitar nada relacionado a isso. Acho que o presidente se aproveitaria politicamente de um pedido de impeachment.

Como ele se aproveitaria? Ele vai dizer que ninguém estava preocupado com a epidemia, que os governadores queriam apenas tirá-lo do cargo. Ele vai colocar suas tropas virtuais e reais na rua para dizer que querem o cargo dele, que ele é vítima de golpe. Ou seja, vai politizar a questão, em vez de enfrentá-la como deve ser enfrentada, com seriedade, com base na ciência, com base na ponderação. Aliás, como fizeram outros líderes mundiais, que chamaram para si a responsabilidade pela crise de saúde pública e a crise econômica, que todo mundo vai passar. O fato é que estamos em uma sinuca de bico. Por isso, acho que todo mundo tem de se manifestar contra os atos dele, porque, afinal de contas, são crimes contra a saúde pública, são crimes de responsabilidade, mas não é hora de discutir isso (a saída do presidente)

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Por que não discutir isso? Porque nesse instante temos uma guerra fundamental a travar: a guerra contra o vírus. Abriríamos uma nova frente de luta política, que tiraria o foco do combate à epidemia. Se quiserem tirá-lo, tirem depois. Se fizermos isso, ele vai colocar suas tropas virtuais e reais na rua para dizer que só queriam o cargo dele, que ele é vítima de um golpe, que não deixaram ele governar. Em suma, vai politizar a questão, em vez de enfrentá-la com seriedade, com base na ciência, com base na ponderação.

O que deve ser feito na sua opinião? Olha, acho que com louco deve se fazer o seguinte: deixe o maluco no seu universo paralelo. É a única forma de levar adiante o trabalho no meio dessa situação séria. Deixe ele fazer as palhaçadas dele. Deixe que ele vá à padaria, à Ceilândia, deixe ele combinar uma coisa com o ministro da Saúde de manhã e fazer outra à tarde. O único jeito de não desviar a atenção para o combate à pandemia é esse. Ao mesmo tempo, as entidades da sociedade civil têm de denunciar, sejam as da área médica, seja a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), cientistas, todos têm de denunciar que existe um crime, mas pensando que não é a hora de desperdiçar esforços com outra causa, a não ser o combate à epidemia, que ainda está no começo, infelizmente.  

O senhor, então, não escreveria um pedido de impeachment do presidente Bolsonaro? Eu escreveria, tecnicamente falando, mas diria que não é a hora de fazer isso. Sabe quando tempo demora para iniciar o processo e afastar o presidente? Pelo menos três meses. Daqui a três meses acabou a pandemia, espera-se. 

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