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“Não há inocentes”, diz ex-senador Luiz Estevão, preso por corrupção

O empresário fala da rotina ao lado de detentos da Lava-Jato e afirma que o juiz Sergio Moro revolucionou o país

Por Hugo Marques Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO Atualizado em 28 fev 2020, 10h29 - Publicado em 28 fev 2020, 06h00

Na adolescência, o empresário brasiliense Luiz Estevão de Oliveira Neto queria ser físico. Dono de uma inteligência acima da média, passou em primeiro lugar no vestibular e chegou a cursar algumas disciplinas, mas abandonou a universidade para se dedicar ao automobilismo. Como piloto, não se deu muito bem, porém acabou, indiretamente, impulsionando a carreira de um de seus mecânicos da época, o tricampeão de Fórmula 1 Nelson Piquet, amigo dele até hoje. O maior talento de “Escovão”, como os colegas o chamavam, era mesmo fazer negócios — e ele fez inúmeros, que lhe renderam uma fortuna estimada por ele mesmo em 10 bilhões de reais e 26 anos de cadeia. Em 1998, já bilionário, Estevão elegeu-se senador, o primeiro da história a ser cassado, sob a acusação de ter desviado 169 milhões de reais da obra do TRT de São Paulo. Depois disso, foi condenado por corrupção e tornou-se o primeiro figurão a ser preso após uma decisão de segunda instância. Após três anos em regime fechado, o ex-senador, de 70 anos, está cumprindo pena em regime semiaberto, ou seja, trabalha durante o dia e dorme na prisão. Nesta entrevista a VEJA, concedida num escritório imobiliário no centro de Brasília, ele fala da rotina na penitenciária da Papuda, onde conviveu com condenados da Lava-Jato e do mensalão, explica de maneira crua como funciona a engrenagem da corrupção no país, tece elogios ao ministro Sergio Moro e ainda confirma que reformou clandestinamente o presídio a pedido de Márcio Thomaz Bastos (morto em 2014), ex-ministro da Justiça.

Qual o status do senhor hoje? Fui condenado a 25 anos de prisão por peculato, estelionato e corrupção. Estou cumprindo pena no regime semiaberto, o que me credencia a trabalhar todo dia. Saio da Papuda às 7 da manhã e volto às 21 horas. Durante o dia, de segunda a sábado, sou obrigado a ficar aqui na imobiliária. Vendo e alugo imóveis pessoalmente, oriento os corretores. Posso ver minha família a cada quinze dias, na chamada “saidinha”, que é quando o preso tem o direito de passar um fim de semana em casa. Essa situação deve perdurar até o fim de 2020, aí passo para o aberto. Pelo lado financeiro, meus bens continuam bloqueados pela Justiça, eu devia quase 800 milhões de reais do dinheiro que me acusam de ter desviado e me cobram uns 2 bilhões em impostos.

“O empresário não é vítima. Digamos que ele torce para ser vítima, torce para ser chamado para uma ‘conversinha’. Quando ele recebe o convite, sai soltando foguetes”

Empresários apanhados em casos de corrupção costumam se apresentar como vítimas de achaque… O empresário não é vítima. Digamos que ele torce para ser vítima, torce para ser chamado para uma “conversinha”. Quando recebe um convite para uma “conversinha”, ele não sai chorando da sala, sai soltando foguetes. Qualquer personagem do mundo da corrupção, não é episódico, aprendeu um modus vivendi, aprendeu uma maneira de ganhar dinheiro. Nesse submundo, não há inocentes. Quando surge uma obra, o cara do órgão público, que representa um político ou um grupo político, indica um operador. E aí se inicia um processo que não tem limites, em que todos passam a ganhar.

Como assim? O tal operador aparece e diz que precisa de dinheiro para financiar campanhas políticas. Ou seja, arruma uma desculpa moral para a extorsão. Ele nunca diz que parte daquele dinheiro é também para comprar uma casa na Côte d’Azur ou em Miami. O empresário, por sua vez, argumenta que, para pagar a propina solicitada, tem de emitir nota fiscal, tem impostos a saldar e precisa criar toda uma estrutura para tirar a propina do caixa da empresa — e recebe o sinal verde para ajustar seus custos. Nesse momento, está rompido o equilíbrio que deveria existir entre contratante e contratado. O empresário e o agente público ficam do mesmo lado. Aí, meu amigo, o céu é o limite. Uma obra que deveria custar 50 pula para 80, 100, 120. Essa foi a regra durante muitos e muitos anos.

Foi esse o mecanismo usado na fraude do TRT de São Paulo que resultou em sua condenação e na cassação de seu mandato? Com certeza, não tenha dúvida. Mas não sou personagem principal desse esquema de corrupção. Fui beneficiário da situação, o que é diferente. Saí da sociedade quatro dias antes da licitação, quando percebi que meus sócios estavam ganhando muito dinheiro. Não estou dizendo que sou inocente. Sim, tirei proveito de alguma maneira, fiz negócios lucrativos, mas não fui agente direto desse esquema. Eu não era o responsável pela obra. No Senado, era também muito conveniente me cassar naquele momento. O mensalão e a Lava-Jato, mais tarde, revelaram as entranhas da política no Brasil.

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Como é a rotina de um bilionário na cadeia? O drama maior não é a perda de conforto. O drama é a privação da liberdade. Você dorme numa cama menos confortável, contorna o fato de ter de conviver 24 horas por dia com um grupo de pessoas com as quais não tem nenhuma afinidade, nunca tinha visto antes, e direciona seu foco para coisas produtivas, principalmente a leitura. Foi o que fiz nesses três anos: li muito, mais de 500 livros, e estudei muito.

Várias vezes se noticiou que o senhor tinha uma série de privilégios no presídio. Nunca tive privilégio nenhum. O que há é o seguinte: eu tinha conhecimento dos meus direitos, e cobrava. Por exemplo, a Lei de Execução Penal diz que o preso tem direito a continuar exercendo suas atividades culturais uma vez que ele esteja na cadeia. Então, quis receber meus livros, quis receber visitas. Não há mordomias. A comida é a mesma quentinha de todos os presos. O máximo é fazer o que chamamos de um “melhorado”, adicionando um tempero, um molho, para dar um pouco mais de sabor. Para malhar, usava garrafas de produtos de limpeza: enchia de água, amarrava a ponta e improvisava como haltere.

Mas, antes de ser preso, o senhor reformou as celas do pavilhão. É verdade. Mas não foi para mim. Foi para o pessoal do mensalão. Na época, atendi a um pedido do doutor Márcio Thomaz Bastos, que foi ministro da Justiça no governo Lula. Eu conhecia o doutor Márcio havia muitos anos. Um dia, ele me telefonou e convidou para um almoço em São Paulo. Lá, disse assim: “Olha, Estevão, estou muito preocupado porque, você sabe, o nosso pessoal vai ser condenado mesmo, e o sistema prisional de Brasília não tem condição de abrigar essas pessoas. O governador lá é o Agnelo, é do PT, tenho boas relações com ele e preciso que alguém toque uma obra de reforma no presídio para deixar essas pessoas distantes do convívio da massa carcerária. Você poderia cuidar disso pra mim?”. Eu respondi que sim.

O ministro da Justiça lhe pediu que executasse uma obra clandestina? Pediu. Era um trabalho simples. Na época, mandei minha equipe lá, fizemos o orçamento e apresentamos ao ministro. Nós transformamos em celas um depósito abandonado que ficava no complexo da Papuda.

E quem pagou por essa obra? Eu apresentava as notas fiscais das despesas, e o ministro pessoalmente me reembolsava. Não gastei nada do meu bolso. Foi tudo pago pelo doutor Márcio, um total de 800 000 reais. Eu chegava lá no escritório dele em São Paulo, apresentava os comprovantes, e ele me pagava em dinheiro. Umas poucas vezes, o pagamento se deu por transferência bancária. Mas repito: a reforma não foi para mim. Se você me perguntar se em 2012, quando essa obra foi feita, eu esperava ser preso, a resposta é não.

“Depois da Lava-Jato, a roubalheira diminuiu muito, porque as pessoas agora têm medo da prisão. A corrupção passou a ser um caminho perigoso”

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Como foi a convivência na prisão com os condenados do mensalão e da Lava-Jato? Conheci o Zé Dirceu (ex-ministro do governo Lula, condenado por corrupção), o Geddel (Vieira Lima, ex-ministro do governo Temer, condenado por corrupção), o Rocha Loures (ex-assessor do presidente Temer, acusado de corrupção) e outros. Eu e Zé Dirceu dividimos a mesma cela, dormimos na mesma cela, tivemos uma convivência extremamente boa. Ele não reclama de nada, não se queixa de nada, nunca o vi se lamentando, o que também é o meu perfil. Já o Geddel chorava muito. Aliás, não apenas ele. Estive com o Henrique Pizzolato (petista, condenado no mensalão), com o Ramon Hollerbach (publicitário, condenado no mensalão). Muitos deles enfrentaram situações de profunda depressão, a ponto de eu chegar e dizer: ‘Você não vai tomar remédio agora não. Seu remédio vai ficar comigo, e eu vou lhe dar todo dia a dose certa”. Com que autoridade eu fazia isso? Nenhuma. Mas pensava: “Esse cara um dia vai se matar”. Havia uma preocupação muito grande com a possibilidade de suicídio de alguns desses presos do mensalão e da Lava-Jato.

Há diferença entre um preso comum e um detento bilionário? No geral, nenhuma. Fiquei 1 200 dias preso em regime fechado. É uma tragédia para qualquer pessoa. Fazia um risquinho no calendário todos os dias. Talvez a diferença seja que você recebe muitos pedidos e acaba se sensibilizando com a situação de precariedade de algumas pessoas. A reação natural é procurar ajudar. Então fui advertido: “Olha, isso aí pode configurar um problema, porque ninguém pode exercer o papel de liderança na cadeia”. Depois disso, a única coisa que fiz, e com a autorização da juíza, foi arrumar emprego para parentes de presos nas empresas da minha família.

Seu caso provocou a mudança de entendimento do Supremo, em 2016, sobre a possibilidade de prisão após a condenação em segunda instância, que acabou revogada no ano passado. Na época, achava que a decisão do STF foi um casuísmo para me prender. Hoje, vejo a prisão após a condenação em segunda instância como uma necessidade. Ao contrário do que se diz, ela não é maléfica para o réu. O índice de reforma de sentenças no STJ e no STF é muito pequeno. O réu fica na ilusão de que ele tem quatro instâncias, mas, na prática, só procrastina a execução da pena. Inexplicavelmente, o Supremo recuou no ano passado. Alguns ministros, provavelmente, perceberam que a prisão em segunda instância criava um cenário que não era do agrado deles.

O senhor acompanhou o desdobramento da Operação Lava-Jato de dentro da cadeia? Claro, eu tinha uma televisão e acesso a jornais e revistas. A corrupção é uma pandemia universal. O que muda são as facilidades para corromper. O que valia antes da Lava-Jato não era a meritocracia, a empresa ter condições de fazer uma obra de qualidade, ser competitiva. O que valia era seguir aquela cartilha de corrupção sobre a qual já falei. O que o juiz Sergio Moro fez em benefício do Brasil ainda não foi dimensionado corretamente. Ele revolucionou o país. Agora, vejo um esforço gigantesco para derrubar os instrumentos que permitiram frear a bandalheira — delação premiada, prisão em segunda instância, essa coisa toda —, mas acho que ninguém vai conseguir. Ele deu um basta, provocou um tsunami que atingiu em cheio esse submundo que conheço bem. A roubalheira diminuiu muito, porque as pessoas agora têm medo da prisão. A corrupção passou a ser um caminho perigoso.

Publicado em VEJA de 4 de março de 2020, edição nº 2676

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