Na briga para ganhar força eleitoral, Ciro Gomes enfrenta dilema
Acossado por Lula na esquerda, o político tem feito acenos à direita. O risco, porém, é ficar no meio do caminho com resistências de ambos os lados
Em sua trajetória, Ciro Gomes já rodou todo o espectro político. Ele começou a carreira no PDS, originário da Arena, a legenda que abrigava os baluartes da ditadura militar. Como deputado estadual e federal, prefeito, governador e ministro duas vezes (com Itamar Franco e, depois, com Lula), ele passou ainda por MDB, PSDB, PPS, PSB, Pros e PDT, sua atual casa. Depois de quatro décadas de zigue-zagues por todos os campos ideológicos, ele chega a sua quarta campanha presidencial como o postulante fora dos extremos com melhor desempenho nas pesquisas. Para ganhar a musculatura necessária, no entanto, precisa encontrar espaço para crescer no centro, que se encontra hoje espremido, de um lado, por Lula e, do outro, pelo até agora sólido patrimônio bolsonarista de intenções de votos. Um dilema para lá de intrincado em sua nova tentativa de chegar ao Palácio do Planalto.
Diante do desafio, um dos movimentos de Ciro tem sido uma espécie de volta às origens. Desde que Lula retornou ao jogo, ele tem intensificado os contatos com as siglas localizadas na centro-direita. Na sua lista de chamadas recentes aparecem os principais quadros do DEM, PSDB, PSD, Cidadania e Solidariedade, entre outros. O objetivo dos contatos é sempre o mesmo: convencer os interlocutores de que ele pode unir as forças que estão entre Bolsonaro e Lula e, claro, vencer a eleição. Por ora, oficialmente, ele é apenas um dos seis pretensos pré-candidatos que assinaram um manifesto em favor da democracia no fim de março. Também subscreveram o documento o ex-ministro da Saúde Luiz Henrique Mandetta (DEM), os governadores tucanos João Doria (SP) e Eduardo Leite (RS), João Amoêdo (Novo) e o apresentador Luciano Huck. Desde então, o sexteto reitera a intenção de caminhar unindo o máximo possível dessas forças em 2022, encabeçado pelo nome que se revelar mais competitivo. A rigor, esse posto atualmente pertence a Ciro. Em recente pesquisa XP/Ipespe, o pedetista aparece com 9% da preferência, ao lado de Sergio Moro (que não assinou o documento), atrás de Lula (29%) e Bolsonaro (28%). Os números, no entanto, não têm sido suficientes para cacifá-lo entre seus pares, que consideram remotíssima uma chance de composição com ele. Por isso, trabalha-se com a hipótese de duas candidaturas de centro, com Ciro desgarrado do grupo no primeiro turno.
Embora sofra resistências, o pedetista arregaçou as mangas e vem tentando construir pontes com expoentes desse grupo. Um dos seus principais interlocutores na empreitada é o ex-prefeito de Salvador e presidente do DEM, ACM Neto, com quem ele se reuniu recentemente para debater a terceira via. Pré-candidato ao governo da Bahia, Neto não esconde de aliados que trabalha com duas opções em uma disputa contra, ao que tudo indica, o senador Jaques Wagner (PT): Ciro Gomes ou Huck, sendo que o apresentador ainda não decidiu se vai entrar na corrida presidencial. PDT e DEM, aliás, já são aliados na prefeitura de Salvador, comandada por Bruno Reis, pupilo de ACM Neto, com uma vice pedetista.
Apesar dos interesses locais, políticos próximos ao baiano veem com ceticismo as chances de Ciro ser a opção do DEM em 2022 . Enquanto estimula a candidatura de Luiz Henrique Mandetta, a sigla presidida por Neto se divide entre os bolsonaristas, os independentes e um grupo de aliados de Doria. “Por ter um discurso distante de parte do partido, Ciro não é um candidato que passe fácil. É mais fácil Mandetta ou até um tucano como Eduardo Leite”, diz um aliado de Neto. No PSD, outra sigla com quem Ciro Gomes e o PDT mantêm diálogo, o ex-ministro Gilberto Kassab só fala em buscar um candidato próprio. O presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (MG), hoje no DEM, passou a ser cotado internamente. “O eleitor de centro tem tendência em preferir uma pessoa com mais raiz no centro. Se não tiver esse candidato, Ciro pode ocupar o espaço, mas dificilmente vai conseguir unificar as candidaturas do campo”, diz Kassab. Recentemente, o pedetista também conversou com o mandatário tucano, Bruno Araújo, e o homem forte do Cidadania, Roberto Freire. Já Carlos Lupi, presidente do PDT, falou com Paulinho da Força, do Solidariedade. Ninguém bateu martelo sobre apoios, mas todos prometeram continuar dialogando.
Classificado pelo pedetista como “animador de auditório”, o próximo alvo das articulações de Ciro será o apresentador Luciano Huck. Graças aos arroubos verbais do político cearense, que já o atrapalharam em outras oportunidades, não será fácil. ACM Neto, no entanto, trabalha para marcar um bate-papo entre eles, o que deve ocorrer em breve. Ao redor de Ciro, pelo menos, o discurso é de flexibilidade e equilíbrio. O senador Cid Gomes, por exemplo, frisa que é possível, inclusive, que seu irmão possa abrir mão de sua candidatura em nome de um projeto comum, que una o Brasil: “Se você entrar num diálogo impondo sua candidatura, não vai funcionar. Mas dizer, logo de cara, que vai recuar também não é um bom caminho. Ciro pode perceber que Huck é mais do que um apresentador”.
Entre a turma de centro-direita, majoritariamente liberal, há duas grandes reservas a Ciro: a já citada verborragia, capaz de explodir pontes históricas, e, principalmente, a defesa de pautas econômicas estatizantes. O pedetista se diz contrário a privatizações consideradas fundamentais por esse campo, como a dos Correios, e é um crítico à autonomia do Banco Central, recém-aprovada pelo Congresso. Em praticamente todas as trocas de ideias a que se propôs, Ciro ouviu dos aliados em potencial que será preciso ceder nesse campo para cair nas graças de quem ele sonha em conquistar. Internamente, no próprio PDT, vem sendo batida a necessidade de, nas palavras de Lupi, “abrir mão de algumas pautas ortodoxas de esquerda”. Mas Ciro consente? “Algumas sim, outras não”, admite Lupi, sem citar casos concretos. As privatizações, por exemplo, dificilmente descerão pela goela do presidenciável, atestam aliados próximos.
A presença de Lula no tabuleiro é outro fator complicador. Em tese, ele empurra Ciro para fora do eleitorado de esquerda, mas isso não vem impedindo o pedetista de tentar atrair partidos que robusteceram os palanques petistas através dos tempos, como PSB, PCdoB e PSOL. Há cerca de um mês, Ciro se reuniu com os deputados Orlando Silva (PCdoB-SP) e Marcelo Freixo (PSOL-RJ). Na conversa, ambos pediram moderação nos ataques a Lula e ao PT porque não seria hora de briga. Ciro concordou em baixar o tom. O armistício durou pouco. Apesar das ponderações, em uma entrevista recente ele disse não se arrepender da viagem a Paris antes do segundo turno de 2018 — “faria hoje com muito mais convicção” — e declarou que nunca mais se alia ao PT. Assim, analistas políticos compartilham o entendimento de que, caso mantenha essa postura, ele pode melindrar eleitores esquerdistas, enquanto sua identificação com esse mesmo campo cria entraves na conquista dos moderados. Um jogo de perde-perde. “Uma coisa é se apresentar como alternativa ao PT, outra é se mostrar um adversário radical. Ao mesmo tempo, o eleitorado do centro vê Ciro com desconfiança”, diz o cientista político Cláudio Couto, professor da Fundação Getulio Vargas (FGV).
Numa análise mais fria, o PDT sabe que a maioria da esquerda deve ficar mesmo nos braços de Lula. Há alguma esperança de seduzir parte do PSB, mas um pedaço crucial da legenda ligado ao governador de Pernambuco, Paulo Câmara, trabalha avidamente pela manutenção da aliança com o PT. A percepção é diferente em relação à coluna vertebral do Centrão. Ciro e aliados veem PP, PL e Republicanos se dividindo entre Lula e Bolsonaro em 2022. Mas o presidente tem perdido popularidade diante da condução catastrófica da pandemia, das ameaças da CPI da Covid-19 e da economia em queda. Se a curva descendente não for revertida, o atual favoritismo para chegar ao segundo turno pode virar pó. Nesse cenário, Ciro vislumbra uma boa chance de atrair um pedaço dessa turma. Para ajudá-lo nessa empreitada, anunciou na quinta-feira, 22, a contratação do marqueteiro João Santana, vitorioso nas eleições presidenciais de 2006, 2010 e 2014, todas com o PT – e que depois delatou à Lava-Jato como recursos ilícitos irrigaram campanhas petistas. Especialistas, porém, veem o temperamento mercurial de Ciro como um desafio para firmar parcerias e angariar esses votos. “Pela forma bélica, Ciro tende a não ser o maior beneficiário, mas algum candidato a ser construído no campo da centro-direita e da direita moderada”, avalia Cláudio Couto.
Em 2018, Ciro foi o terceiro candidato mais votado, com 13,3 milhões de votos. Em tese, pelas pesquisas e pelo retrospecto, ele seria o candidato que poderia encarnar com mais força a terceira via no ano que vem. Mas não será tão simples assim. Ele terá de encontrar o tom certo e a roupagem ideal para crescer na campanha com apoios à direita, sem perder a credibilidade junto a uma parte da esquerda — uma difícil e talvez intransponível encruzilhada.
Publicado em VEJA de 28 de abril de 2021, edição nº 2735