A definição do STF como um tribunal formado por “onze ilhas incomunicáveis”, na célebre metáfora cunhada pelo ministro aposentado Sepúlveda Pertence, nunca se encaixou tão bem quanto no período do auge da Lava-Jato. Naqueles tempos, quando a Corte se encontrava dividida sobre os métodos da operação, os nervos dos ministros estavam tão aflorados que qualquer faísca era suficiente para incendiar o plenário. Não eram raras as cenas de bate-boca transmitidas ao vivo pela TV Justiça que marcaram negativamente a história do tribunal. Espécie de ápice da era de confrontos abertos, entrou para a história a desavença entre os ministros Luís Roberto Barroso e Gilmar Mendes, quando o primeiro classificou o colega de uma “pessoa horrível”, durante uma discussão em plenário em 2018, e o segundo rebateu: “Vou recomendar ao ministro Barroso que feche o seu escritório de advocacia”. Numa guinada impressionante de comportamento, e que se revelou fundamental para os destinos do país nos últimos anos, o Supremo deixou os tempos de “ilhas incomunicáveis” e decidiu se unir de uma forma que nunca havia ocorrido na história. O fogo amigo e as picuinhas foram deixados de lado. Decisões individuais relevantes, e muitas vezes polêmicas, têm sido referendadas pela grande maioria dos ministros com celeridade. Os magistrados intensificaram o diálogo interno, passaram a tomar mais decisões institucionais em conjunto e a discutir juntos o futuro da Corte.
O STF já havia virado vidraça desde os tempos da Lava-Jato, culminando com a mais polêmica das decisões do período, quando os ministros derrubaram a prisão em segunda instância, libertando da cadeia o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Na sequência, ainda anularam os processos criminais contra ele, batendo o martelo de acordo com a tese da parcialidade de Sergio Moro. No governo Bolsonaro e, sobretudo na pandemia, a Corte ficou ainda mais visada. No vácuo da inanição do Legislativo frente ao negacionismo do governo federal, o tribunal assumiu de forma corajosa a defesa da ciência e das vidas em uma série de decisões. Na sequência, funcionou como anteparo aos constantes arroubos autoritários de Bolsonaro e uma torrencial tempestade de ameaças antidemocráticas.
Em consequência disso, o chefe do Executivo elegeu o Judiciário como seu principal inimigo político e, por diversas vezes, fez ameaças concretas ao STF e atiçou seus seguidores mais radicais contra a Corte. Para fazer frente a essas ameaças e aos coordenados ataques foi que os ministros utilizaram sabiamente o princípio de que a união faz a força. É verdade que esse esforço de atuação sincronizada pela preservação da instituição em meio a críticas ferozes e com inimigos que continuam à espreita cobra até hoje um preço alto e exige um estado de vigília permanente. “Desde fevereiro de 2019 nós estamos sem dormir”, confidenciou a VEJA um dos ministros.
O movimento pela suprema união do STF teve uma espécie de marco zero com a abertura do inquérito das fake news justamente em 2019, medida controversa tomada de ofício (sem provocação de outro órgão) pelo então presidente da Corte, Dias Toffoli, que àquela altura só tinha o apoio de dois de seus pares: Gilmar Mendes e Alexandre de Moraes. Ao segundo foi entregue, sem sorteio, a relatoria do inquérito, num procedimento incomum que gerou reação dos demais ministros, do Ministério Público e do mundo jurídico. Com o passar do tempo e o avanço das apurações, contudo, as resistências internas foram sendo superadas e o plenário legitimou a investigação em andamento.
Nos bastidores, houve um entendimento de que o que ocorria no Brasil imitava o padrão já observado em outros países com líderes populistas, como Hungria e Turquia, onde primeiramente as Cortes Supremas foram enfraquecidas perante a população para, em seguida, serem aprovadas mudanças constitucionais que as amordaçaram — por meio do aumento do número de juízes indicados pelo presidente de turno, por exemplo. Assim, na visão dos ministros hoje, o inquérito das fake news e seus similares, como o das milícias digitais, forneceram ao Supremo os instrumentos necessários para enfrentar essa ameaça. “Em todas as democracias constitucionais do mundo existe algum grau de tensão entre quem exerce o poder político majoritário — o presidente da República — e quem tem o papel institucional de limitá-lo, que é a Suprema Corte. Só não há esse tipo de ‘conflito’ nos países onde não haja democracia ou os tribunais constitucionais tenham sido capturados”, disse a VEJA Luís Roberto Barroso.
O processo de união da Corte se solidificou de vez ao longo das eleições, diante dos frequentes ataques infundados dos bolsonaristas contra as urnas eletrônicas e o resultado do pleito, que terminou com a derrota de Bolsonaro para Luiz Inácio Lula da Silva. Um exemplo recente dessa unidade foi a decisão do plenário de ratificar rapidamente, em votação no plenário virtual de madrugada, uma decisão de Moraes que determinou que a Polícia Rodoviária Federal desbloqueasse centenas de trechos de rodovias obstruídos por simpatizantes do presidente. Em outra votação simbólica, em abril, a Corte condenou o deputado Daniel Silveira (PTB-RJ) a mais de oito anos de prisão por crimes de ameaça ao estado democrático de direito, num claro recado de que ataques aos ministros não serão tolerados.
Nos dois casos, notou-se que os nomes indicados ao tribunal por Bolsonaro, os ministros Nunes Marques e André Mendonça, não se somaram aos esforços da maioria. No julgamento virtual sobre as rodovias, eles foram os últimos a votar. Já no caso de Silveira, Mendonça propôs uma pena menor, enquanto Nunes Marques se manifestou pela improcedência da ação penal. Para interlocutores dos ministros, entretanto, as discordâncias da dupla não chegam a atrapalhar o espírito de corpo que tomou conta do Supremo. Além de serem minoria, ambos têm comportamento reservado e não dão declarações públicas contra os colegas. Exemplo disso ocorreu nos últimos dias, quando Alexandre de Moraes deu uma resposta dura e adequada à tentativa estapafúrdia de anulação das eleições por parte do PL, partido de Bolsonaro. O ministrou rejeitou a ação sem pé nem cabeça, multou o partido em mais de 22 milhões de reais, por litigância de má-fé, e o presidente da sigla, Valdemar Costa Neto, será alvo de uma investigação criminal (veja a reportagem na pág. 28). Atitudes como essa de Moraes só são possíveis hoje com o respaldo da maioria dos colegas.
Os sinais de união dos ministros vão além dos processos julgados, como mostram dois episódios emblemáticos. Depois da derrota nas urnas, emissários de Bolsonaro convidaram individualmente os ministros Gilmar Mendes, Luiz Fux e Nunes Marques para conversas com o mandatário no Palácio da Alvorada. Em outros tempos, era de esperar que os convidados atendessem ao chamado. Mas, diante da sensibilidade do momento, Gilmar comunicou a presidente da Corte, Rosa Weber, que de imediato pediu a todos os ministros que fossem ao seu gabinete para que a decisão sobre o encontro fosse coletiva. Moraes ponderou que, antes de o tribunal conversar com Bolsonaro, era oportuno que ele reconhecesse a derrota. Reunidos no gabinete de Rosa, os ministros assistiram juntos à transmissão do pronunciamento de dois minutos que o presidente fez — no qual não reconheceu expressamente o resultado do pleito, mas permitiu que seu ministro da Casa Civil, Ciro Nogueira, anunciasse o início da transição. Foi a senha para que os magistrados decidissem, coletivamente, divulgar uma nota enfatizando esse aspecto. Ato contínuo, uma secretária de Rosa acionou o gabinete de Bolsonaro para convidá-lo a visitar o Supremo — e a reunião aconteceu em clima amistoso. Em outra passagem, Lula, depois de eleito, pediu uma audiência com a presidente do Supremo. Rosa, em vez de recebê-lo sozinha, convidou todos os colegas — somente Barroso não pôde participar, por estar no exterior.
A presidência da ministra, aliás, é apontada como um fator agregador no tribunal. Sem inimigos internos e pouco afeita a disputas por poder, Rosa terá um mandato mais curto, de apenas um ano, no comando do STF — ela se aposenta em outubro de 2023, quando completa 75 anos —, o que colabora para que seus pares não tenham disposição de atacar sua gestão. O clima está tão pacificado que mesmo ministros que tinham desavenças públicas, como Gilmar Mendes e Luiz Fux, fizeram as pazes no último mês. Fux foi muito criticado pelo colega por causa de medidas que adotou como presidente da Corte. O entendimento entre eles é visto também como uma reaproximação entre as alas distintas do Supremo que disputavam espaço desde os tempos da Lava-Jato.
Entrar nesse seleto rol de magistrados do STF no momento em que a instituição vive o apogeu de seu poder, prestígio e visibilidade é hoje um dos maiores desejos de talentos da área jurídica do país — e uma corrida está em curso para ocupar as duas vagas que devem se abrir em breve na Corte. O movimento mais quente do momento envolve a sucessão do ministro Lewandowski, que terá de se aposentar por idade em maio próximo. Entre aliados de Lula e dentro do Supremo há nomes de peso que defendem a ideia de que Lewandowski antecipe sua aposentadoria e assuma o Ministério da Defesa no novo governo, a partir de 1º de janeiro. Ele é apontado como alguém apto a pacificar as relações com a caserna. Primeiro, por ter formação militar — é segundo-tenente da reserva do Exército, da Arma de Cavalaria. Segundo, por gozar de grande prestígio junto a Lula. Interlocutores do ministro no STF afirmam que ele deve aceitar um eventual convite.
A partir da definição sobre o futuro de Lewandowski, Lula deve dar início ao processo de escolha de seu sucessor no STF. As bolsas de apostas já têm uma variedade de nomes e perfis. Há consenso de que a segunda cadeira a ficar vaga em 2023, com a aposentadoria de Rosa, deverá ser ocupada por uma mulher. Isso tem feito com que os candidatos homens já estejam em plena campanha para a primeira vaga. Entre os mais cotados aparecem o advogado Cristiano Zanin Martins, que defendeu Lula na Lava-Jato e colecionou ao final grandes vitórias. Ele seria uma indicação pessoal do presidente eleito. Outro nome forte no páreo é o do ministro Bruno Dantas, do TCU. Ele tem o apoio de Gilmar, Moraes e Toffoli, e também é próximo de Renan Calheiros (MDB-AL), um dos principais aliados de Lula no Senado. Dantas seria uma indicação política, que pode render frutos para o petista por agradar a autoridades importantes.
São ainda citados como candidatos advogados criminalistas de perfil garantista, bem ao gosto do PT, como Pierpaolo Bottini e Alberto Toron, além de Pedro Serrano e Lenio Streck — todos membros do grupo de advogados Prerrogativas, que apoiou a eleição de Lula. Um nome defendido para a vaga pelo próprio Lewandowski é o de seu ex-assessor no STF Manoel Carlos de Almeida Neto. Mesmo que o ministro não emplaque seu candidato, é dado como certo que qualquer indicação à Corte passará por sua aprovação. “O papel do Supremo na vida democrática do país se agigantou e acredito que, sob o governo Lula, ele deverá continuar, não será diminuído”, afirma o advogado Toron.
Tamanho gigantismo, evidentemente, também põe em alerta quadros do PT que, em reservado, receiam que a atuação da Corte, que muitas vezes soa como política, interfira no próximo governo. A diferença em relação a Bolsonaro, na visão de ministros, é que eventuais decisões contra o Executivo passarão a ser encaradas como parte do jogo, não mais como perseguição. Desde a reunião com os magistrados, Lula tem dado sinais de que quer pacificação e diálogo institucional. “A partir de 2023 terá de se buscar um entendimento, cada poder atuando em sua área, sem extravasamento. Nem o Supremo substituindo-se ao Legislativo e ao Executivo, nem os outros dois ao próprio Supremo”, preconiza o ministro aposentado Marco Aurélio Mello, tradicionalmente uma voz dissonante entre os juízes do STF e crítico sobretudo das decisões de Moraes. Os atos golpistas na porta dos quartéis e a escalada recente da violência em estados como Mato Grosso, no entanto, fizeram a Corte decidir manter-se mobilizada — o foco é identificar e responsabilizar os financiadores dos protestos. A princípio, nada muda, pois os ministros enxergam riscos no horizonte e entendem que só a suprema união pode seguir garantindo a normalidade institucional no país.
Publicado em VEJA de 30 de novembro de 2022, edição nº 2817