“Você não é bem-vindo aqui.” Ao ouvir a frase, disparada em tom de ameaça por sujeitos postados na entrada da favela de Rio das Pedras, na Zona Oeste do Rio de Janeiro, o deputado estadual Renan Ferreirinha (PSD), que tenta uma vaga na Câmara Federal, não pensou duas vezes: reuniu seus cabos eleitorais, deu meia-volta e riscou o local da agenda de campanha. Nos bolsões de pobreza do Rio, o terceiro maior colégio eleitoral do país, fazer comício e distribuir santinhos depende da autorização das milícias e do tráfico de drogas. A situação não é nova, mas neste ano se expandiu como nunca, junto com a proliferação desse abominável poder paralelo.
Pesquisa do Instituto Fogo Cruzado, em parceria com a Universidade Federal Fluminense (UFF), mostra que o domínio territorial das organizações criminosas no estado avançou 5,5% entre 2018 e 2022 e abrange hoje 20% da região metropolitana da capital. Em uma área que compreende 97 zonas eleitorais, 77 — com 4,6 milhões de eleitores — estão nas mãos de grupos armados que barram candidatos que não sejam os seus e ganham dinheiro com a ingerência na campanha.
A situação no Rio complicou-se a ponto de o prefeito Eduardo Paes ir ao ministro Alexandre de Moraes, presidente do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), para denunciar as intimidações e pedir ajuda. Criou-se então um gabinete extraordinário, dotado de um serviço de Inteligência que reúne a Justiça Eleitoral, a Polícia Federal e o Comando Militar do Leste, entre outros, para tentar coibir a prática. “Chegamos a um ponto inadmissível”, alerta o presidente do Tribunal Regional Eleitoral (TRE), Elton Leme. Para aferir o nível de interferência do poder paralelo, VEJA ouviu quarenta candidatos ao Senado, Câmara e Assembleia Legislativa e os quatro mais bem colocados na disputa pelo governo estadual. Deles, 75% confirmaram já ter enfrentado restrições e ameaças ou, por precaução, tirado as áreas de risco da campanha. “Para fazer política no Rio não tem de ter só preparo, é preciso coragem”, diz Rodrigo Neves, candidato ao governo pelo PDT.
Neves anda de carro blindado e segurança armada e contratou uma equipe para avaliar riscos. Mesmo com todo esse cuidado, foi impedido pelo tráfico de fazer uma carreata em São Gonçalo e, pela milícia, de promover uma reunião na Zona Oeste. Nas duas vezes, seus assessores receberam recados ameaçadores. Canteiro de milicianos, essa região do Rio é uma das mais sujeitas à cultura do medo disseminada pelos criminosos. Levantamento feito pelo Disque Denúncia, a pedido de VEJA, mostra que nos últimos seis meses o serviço recebeu 3 022 ligações sobre milícias, sendo 2 019 referentes à capital e, destas, 66% mencionando bairros e comunidades na Zona Oeste.
A Baixada Fluminense, onde o tráfico predomina, é outro ponto crítico. Aureo Lídio (Solidariedade), candidato à reeleição na Câmara, viveu uma situação de pânico há duas semanas, quando ele e apoiadores foram “convidados” por um homem armado a deixar um bairro de Duque de Caxias dominado pelo tráfico. A intimidação, porém, acontece em toda parte. Gabrielly Damasceno, candidata a deputada federal pelo PSC, relata que, ao tentar fazer corpo a corpo em alguns pontos de Bangu, onde mora, recebeu mensagens assustadoras no seu Instagram, como “Cuidado por onde anda, Gabizinha. (…) Já, já vai tomar na cabeça”. Em grupos de WhatsApp de moradores surgem avisos de que só os escolhidos da quadrilha podem fazer campanha. “Se peitar, vai sofrer as consequências”, diz um recado do tráfico que circula no bairro Parada 40, em São Gonçalo.
Vários candidatos ouvidos pela reportagem também confirmam a existência de um pedágio para entrar em determinados locais onde a lei da exclusividade é mais flexível. Neles, a tabela do tráfico vai de 300 000 a 500 000 reais e a da milícia pode chegar a 1 milhão de reais. Ganha desconto e até passe livre quem tem ligação com os criminosos ou quem acena com potencial para influir e indicar cargos no governo e na Alerj. “Nos últimos anos as milícias passaram a agir de forma diferente. Em vez de lançar candidatos da organização, estão investindo em nomes com ficha limpa”, observa o promotor Bruno Gangoni, coordenador do Grupo de Atuação Especial no Combate ao Crime Organizado (Gaeco). Não totalmente: o Ministério Público do Rio identificou oito candidatos que são alvo de inquérito por ligações com o crime organizado.
Em Rio das Pedras, a reportagem de VEJA até viu material de campanha de alguns candidatos, mas cabos eleitorais com bandeiras, só mesmo os de Chiquinho Brazão, que busca a reeleição como deputado federal, e de Manoel Inácio Brazão, postulante à Alerj, ambos do União Brasil. “Temos visitado os 92 municípios do estado, bairros e regiões da cidade sem nenhuma dificuldade. Sempre trabalhei em prol do social”, argumenta Chiquinho, que é irmão de Domingos Brazão, conselheiro afastado do Tribunal de Contas do Estado (TCE), investigado por supostos laços com milicianos.
Candidato ao governo do Rio, Marcelo Freixo (PSB), que comandou a CPI das Milícias em 2008, obviamente não chega perto dos enclaves dominados. “As campanhas ficaram limitadas territorialmente nas últimas eleições, mas neste ano piorou muito”, avalia ele, que anda de colete à prova de bala. Como Freixo, o deputado estadual Luiz Paulo Corrêa da Rocha (PSD), candidato ao sexto mandato na Alerj, restringe sua agenda ao asfalto. “Eu me recuso a pedir autorização a bandidos para me locomover”, afirma. Já o governador Cláudio Castro (PL), que tenta se reeleger, diz que desconhece a intimidação. “A mim não chegou nenhum caso, mas qualquer denúncia será absolutamente investigada e combatida”, promete. Os próprios moradores da Zona Oeste não só confirmam as barreiras como dizem que a coação se estende a eles no dia da votação: os bandidos fazem sua boca de urna particular e pressionam com ameaças pelo voto nos seus apadrinhados. Nas áreas dominadas pelo crime no Rio, eleição é jogo de cartas marcadas.
Publicado em VEJA de 5 de outubro de 2022, edição nº 2809