Outsider nas eleições em São Paulo, o ex-coach Pablo Marçal apostou na desordem: não economizou na agressividade aos adversários, divulgou acusações sem provas, tumultuou debates, ofendeu seguidamente os concorrentes e chegou a levar uma cadeirada de um deles, José Luiz Datena (PSDB), ao vivo na TV. Sem tempo no horário eleitoral, mas embalado por uma forte presença digital, martelou os bordões “faz o M” e “não vai ter segundo turno”. A previsão se concretizou, mas não da forma como imaginava: a rodada final vai acontecer, mas sem ele no páreo. O desempenho nas urnas, porém, foi impressionante: 1,7 milhão de votos (quase 30%), com a possibilidade real de superar tanto Ricardo Nunes (MDB) quanto Guilherme Boulos (PSOL) durante a apuração. Saiu dela dizendo que não se achava derrotado e avisou que “2026 é logo ali”. “Eu me sinto o político mais poderoso do Brasil hoje”, declarou, sem nenhuma modéstia.
A pretensão do ex-coach, no entanto, esbarra em um problema. Ou melhor, em centenas deles. Entre a realização da convenção partidária, em agosto, e o fim da sua campanha, ele acumulou nada menos do que 206 processos judiciais. Há sete ações na Justiça comum, incluindo cobranças milionárias de empresas que trabalharam para ele na eleição e pedidos de indenização de adversários por crimes como calúnia, injúria e difamação. Outras 199 ações foram sobrecarregar a Justiça Eleitoral. Parte desse acervo já foi arquivado e a maioria são representações (74) e pedidos de direito de resposta (56), mas há nesse bolo alguns casos sensíveis que podem minar os planos de Marçal porque têm potencial para torná-lo inelegível (veja o quadro).
Embora até agressão com soco tenha sido registrada contra a sua campanha — desferido por um assessor contra um marqueteiro de Nunes —, a acusação mais grave contra Marçal veio de um tiro no pé dado pelo próprio. Na antevéspera do primeiro turno, ele publicou em seu perfil um laudo apontando que Boulos havia sido internado em 2021 devido a um surto psicótico por uso de cocaína. O documento era falso. O médico que assina o atestado já faleceu, nunca atendeu na clínica indicada e sua especialidade era hematologia. O número do RG do psolista está errado, e o candidato do PSOL tinha várias evidências de que cumpria outras agendas no dia da “internação”. Além de ter perdido votos e aliados com isso, já que a condenação política ao episódio foi ampla, ele agora responde a investigações criminais tanto na Justiça Eleitoral quanto na comum. Em qualquer uma dessas frentes, o preço pode ser o fim da pretensão de ser candidato em 2026. De quebra, entrou na mira de Alexandre de Moraes, do STF, e da Polícia Federal pelo uso sistemático e indevido da rede social X para propagar desinformação — o que também pode deixá-lo inelegível.
Na impressionante relação de rolos na Justiça do ex-candidato há ainda mais dez ações de investigação judicial eleitoral, mesmo tipo de processo que tirou o ex-presidente Jair Bolsonaro das urnas, incluindo a que o PSB, de Tabata Amaral, moveu por causa do sistema de remunerar pessoas para fazer e viralizar “cortes” de vídeos nas redes — prática que pode caracterizar abuso de poder econômico e que representou o primeiro grande golpe na sua campanha, com a suspensão de todos os seus perfis na internet.
Apesar de todas as encrencas que acumulou em tão curto espaço de tempo em sua tentativa de virar prefeito de São Paulo, Marçal não entrou na disputa com a bagagem vazia. Antes mesmo da pré-campanha, ele já carregava mais de 100 processos em seu nome e no de suas empresas, além de investigações complicadas e com o potencial de gerar condenações criminais. Dois exemplos graúdos são a expedição fracassada a um pico na Serra da Mantiqueira, colocando em risco a vida de pessoas, e o inquérito que investiga se ele usou as doações da campanha presidencial de 2022, quando era filiado ao PROS, para lavar dinheiro. Esse último caso é investigado pela mesma delegacia da Polícia Federal que apura o laudo falso contra Boulos.
O comportamento de Marçal, que flerta a todo tempo com a ilegalidade, o mau gosto e a falta de educação, também teve um outro custo alto para ele. Sua rejeição foi crescendo à medida que se tornava mais conhecido, chegando a 53% na reta final da eleição, segundo o Datafolha, um cenário que tornaria quase impossível uma vitória no segundo turno contra qualquer rival. Também criou barreiras para qualquer articulação política futura, como uma aproximação com Ricardo Nunes. Na campanha, ele levantou várias vezes o caso em que o prefeito teve um boletim de ocorrência registrado pela esposa por violência doméstica — já no dia seguinte ao primeiro turno, Nunes avisou que vai em busca do eleitor de Marçal, mas quer o ex-coach longe do seu palanque. Dentro da campanha do prefeito, a ordem é não dar mais engajamento a Marçal e tratá-lo como “página virada”. Incomodado, o ex-coach anunciou que não vai apoiar a reeleição do emedebista, disse que seu objetivo na disputa era vencer a “extrema esquerda”, mas que agora liberou os seus apoiadores até para votar em Boulos, que, afirma, “vai vencer”.
Apesar da derrota no primeiro turno, dos problemas com a Justiça, da alta rejeição do eleitor e do nariz torcido de boa parte da classe política, Marçal não baixa a régua da pretensão eleitoral. Para 2026, disse que vai tentar um cargo no Executivo — governo do estado ou a Presidência da República. Hoje seu nome tem o potencial de fragmentar ainda mais a direita e atrair uma parcela generosa do eleitorado de Bolsonaro, em especial aquela mais radical, que não se identificou com Nunes e não se identifica com o governador Tarcísio de Freitas (Republicanos), nome moderado da direita que tem se credenciado a ser a alternativa dessa corrente ideológica para o Planalto.
Os planos já começaram a ser feitos. Em entrevista após a derrota, Marçal disse que já foi sondado por quatro partidos grandes — não revelou nenhum. Na pré-campanha, chegou a flertar com o União Brasil, quando participou de reunião em Brasília com o governador Ronaldo Caiado, o presidente do partido, Antonio Rueda, e o secretário-geral da sigla, ACM Neto. Ele teve outros contatos com Rueda. Membros da sigla em São Paulo classificam a filiação de Marçal como um evento “bem possível”. Ciro Nogueira, presidente do PP, disse a VEJA que Marçal é um nome de alcance nacional que “pode disputar qualquer cargo majoritário” e “só não compete com Bolsonaro”. Outros bolsonaristas se aproximaram de Marçal, como o ex-ministro e hoje deputado Ricardo Salles (Novo), que atuou para fazer a ponte entre o ex-coach e o ex-presidente Jair Bolsonaro. Salles acha que Marçal perdeu a eleição ao divulgar o laudo falso, mas conseguiu acumular capital político suficiente para ser levado em consideração no jogo de 2026.
Quando começou a falar que iria disputar a eleição paulistana, Marçal era a escolha de menos de 5% dos eleitores. Alavancado pelo discurso antipolítica, pela pregação da ascensão social por meio do empreendedorismo e pelas polêmicas em série, ficou a poucos passos de disputar o segundo turno em São Paulo. O seu estilo perturbador pode causar barulho por mais tempo na política, mas isso vai depender da enorme prestação de contas que tem a fazer com a Justiça.
Publicado em VEJA de 11 de outubro de 2024, edição nº 2914