Instado a provar fraudes, Bolsonaro coloca eleição de 2022 em dúvida
Atos em todo o país pressionam por aprovação de PEC que estabelece voto impresso e obriga "expedição de cédulas físicas conferíveis pelo eleitor"
O presidente Jair Bolsonaro voltou a radicalizar o discurso neste domingo, 1º, e colocou as eleições de 2022 em xeque caso não seja aprovada uma emenda constitucional que permita a impressão dos votos depositados em urnas eletrônicas. A retórica bolsonarista apoia-se em uma suposta vontade popular em favor do voto impresso – a despeito de institutos como o Datafolha terem retratado que 73% dos brasileiros apoiam as urnas eletrônicas – e se trata, em grande medida, de um método para manter seus apoiadores unidos e pavimentar terreno para um ambiente de dúvidas durante o processo eleitoral.
O discurso do presidente ocorre na véspera do fim do prazo para que ele apresente em juízo, por ordem do corregedor da Justiça Eleitoral Luís Felipe Salomão, supostas provas de que as eleições presidenciais de 2018 foram fraudadas. Também ocorre dias após o ex-capitão protagonizar uma transmissão ao vivo onde, a pretexto de enfim tornar públicas as evidências que dizia ter contra a segurança das eleições, destilou teorias conspiratórias contra o processo eleitoral há muito já desmentidas. Neste domingo, o presidente utilizou aliados presentes nos manifestos para transmitir, via chamadas de vídeo, mais uma vez, discursos contra a higidez das eleições e a segurança das urnas eletrônicas. Em Belo Horizonte, Brasília e Rio de Janeiro, disparou mensagens com ataques ao presidente do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), ministro Luís Roberto Barroso, e afirmou que as eleições do próximo ano podem não ocorrer caso o Congresso não aprove métodos de auditagem e impressão de votos.
Esses dois pontos-base da tese de Bolsonaro já são possíveis com mecanismos como o boletim de urna, registro impresso em papel contendo os votos de cada seção eleitoral, emitido ao fim do dia de votação e afixado em local público para qualquer eleitor conferir, por si próprio, quantos votos teve cada postulante a cargos eletivos. Também são gravados, entre outros, a versão digital do boletim de urna e o Registro Digital do Voto (RDV), uma lista fora de ordem dos votos recebidos pela urna que permite se saber quantos votos cada candidato teve, mas protege o sigilo ao impedir que seja possível identificar quem votou em qual político. Neste domingo, diante das manifestações em diversas cidades, o TSE veio a público por meio das redes sociais para tentar conter a desinformação envolvendo as eleições. “Você sabia que os votos já são impressos? É isso mesmo: qualquer eleitor pode fazer a contagem de votos por conta própria. Isso é possível com o BU, o famoso boletim de urna. Faça sua própria auditoria”, escreveu o tribunal.
Os atos deste 1º de agosto foram convocados por movimentos de viés conservador e apoiados por parlamentares ligados ao presidente, entre os quais o deputado federal Eduardo Bolsonaro (PSL-SP), que pressionam para obrigar que, nas eleições, haja “a expedição de cédulas físicas conferíveis pelo eleitor, a serem depositadas, de forma automática e sem contato manual, em urnas indevassáveis, para fins de auditoria”. “Vocês estão aí, além de clamar pela garantia da nossa liberdade, buscando uma maneira que tenhamos eleições limpas e democráticas no ano que vem. Sem eleições limpas e democráticas, não haverá eleição. Nós que exigimos. Pode ter certeza. Vocês são de fato o meu Exército, o nosso Exército, para que a vontade popular seja expressa na contagem pública dos votos”, disse o presidente em uma gravação feita do Palácio da Alvorada.
Na mensagem, Bolsonaro atacou o ministro Luís Roberto Barroso, a quem atribuiu um suposto viés antidemocrático por não dar crédito a teorias contra as urnas eletrônicas, e disse que as manifestações em São Paulo seriam o termômetro para que ele “dê o último alerta” na defesa do voto impresso. Por volta das 16 horas, apoiadores do presidente se reuniram na altura da Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (Fiesp), na avenida Paulista, e acompanharam, por meio de um telão, discursos de parlamentares como Bia Kicis (PSL-DF), autora da emenda constitucional em favor do voto impresso.
Próximo do final do ato, Bolsonaro também discursou em videochamada para a multidão. A mensagem teve o mesmo teor daquelas transmitidas em Brasília e no Rio de Janeiro, com o presidente parabenizando os apoiadores pela iniciativa e afirmando que o voto impresso é uma forma de expressão “democrática”. Nas redes, Eduardo Bolsonaro afirmou que os defensores do voto auditável terão “sucesso” nesta semana, e que será preciso, mais vezes, retornar às ruas.
O “último alerta” a que se referiu Bolsonaro remete a declarações anteriores de outros integrantes graduados do governo, como o general Luiz Eduardo Ramos a VEJA, que afirmaram que não se deveria “esticar a corda” sob pena de consequências imprevisíveis. Ou como recentemente mostrou reportagem de O Estado de S. Paulo, do ministro da Defesa Walter Braga Netto, que teria dito à cúpula da Câmara dos Deputados que não haveria eleições sem voto impresso.
“Juntos nós faremos o que tiver de ser necessário para que haja a contagem pública dos votos e tenhamos eleições democráticas no ano que vem. Se preciso for, para dar o último alerta àqueles que não têm respeito para conosco”, disse hoje Bolsonaro. O presidente também acusou autoridades que não concordam com suas declarações de serem anti-democráticas e favoráveis à “corrupção” e à “impunidade”.
Em Brasília, houve concentração em frente ao Museu da República, com manifestantes portando bandeiras do Brasil e cartazes em prol da “contagem pública de votos” e defendendo a adoção do voto auditável, prática já existente na Justiça Eleitoral brasileira. O ex-ministro de Relações Exteriores Ernesto Araújo era um dos manifestantes. Na orla de Copacabana, no Rio de Janeiro, manifestantes exibiram faixas e usaram um guindaste para erguer uma bandeira brasileira com os dizeres “pátria amada”. Em São Luís (MA), havia cartazes com o mote “todo o poder emana do povo”. Por meio das redes sociais, Eduardo Bolsonaro afirmou que “só há democracia com participação popular, eleições transparentes só com contagem pública de votos”.
A ideia de imprimir votos depositados nas urnas eletrônicas não é nova. Em 2002, apenas dois anos após a primeira eleição com 100% de cabinas eletrônicas, o TSE fez sua tentativa de impressão de parte dos votos dos brasileiros. Na época, foram selecionados 150 municípios para ter urnas com impressoras próprias. Resultado: as cédulas ficaram presas em vários módulos de impressão, gerando filas e atrasos na votação. Na cidade do Rio de Janeiro, por exemplo, 60% dos eleitores não verificaram sequer o espelho do voto impresso antes de ele ser depositado na urna paralela.
Nos tribunais, o temor da adoção do voto impresso, insuflado pelo presidente Bolsonaro em sucessivas declarações públicas, tem como pano de fundo o risco de qualquer eleitor alegar uma suposta irregularidade para parar a apuração das urnas e judicializar as eleições, como ocorreu no início do ano durante o processo eleitoral dos Estados Unidos. As urnas eletrônicas têm diversos mecanismos de segurança para evitar possíveis fraudes nas eleições: assinaturas criptografadas em série, selos próprios emitidos pela Casa da Moeda, laudos que mostram que o equipamento está vazio antes da votação e simulação de votações independentes para atestar que elas registram exatamente o número que é digitado pelo eleitor. Os softwares da Justiça Eleitoral são armazenados em uma sala-cofre no TSE e as urnas são programadas para travar ao menor sinal de que o sistema sofreu uma tentativa de invasão.
Testes de segurança nas urnas eletrônicas também são corriqueiros no processo eleitoral. É praxe que um ano antes das eleições o TSE realize testagens em que hackers são incentivados a tentar invadir os equipamentos de votação e detectar falhas. Congressistas críticos ao sistema eletrônico de votação, como o deputado Eduardo Bolsonaro, podem acompanhar passo a passo os testes, mas normalmente se recusam a comparecer às avaliações públicas de segurança. Apesar da existência de movimentos em prol da impressão do voto, o Supremo Tribunal Federal (STF) já invalidou por duas vezes, em 2009 e 2015, leis que adotavam o voto impresso por considerar que a impressão do voto é inconstitucional porque coloca em risco o sigilo da escolha do eleitor.