Maioria das recomendações da Comissão Nacional da Verdade segue no papel
Em 2021, completam-se dez anos que grupo foi criado para apurar violações aos direitos humanos ocorridas na ditadura militar
Criada por lei em 18 de novembro de 2011, a Comissão Nacional da Verdade (CNV) teve a função não de punir nem indiciar criminalmente violadores de direitos humanos no período da ditadura militar, mas expor “recomendações” ao Estado brasileiro. Elas foram apresentadas em 2014, num dia simbólico: 10 de dezembro, Dia Internacional dos Direitos Humanos. Mas, desde então, quase nada saiu do papel. Das 29 recomendações que constaram no relatório final, 22 nada ou pouco avançaram, segundo levantamento do professor de Direito Constitucional da UFMG Emilio Peluso, coordenador do Centro de Estudos sobre Justiça de Transição.
A responsabilização dos agentes da ditadura, por exemplo, não tem tido êxito apesar dos esforços do Ministério Público Federal (MPF).
“A CNV teve um papel fundamental em sistematizar várias informações. As suas recomendações têm um teor forte e de mudança”, afirma Peluso. “Mas o contexto pós-CNV foi politicamente conturbado, e as recomendações agora são uma pauta antagônica ao que o governo Bolsonaro almeja”, analisa o pesquisador sobre os motivos pelos quais as recomendações pouco saíram do papel.
A CNV foi extinta no mesmo dia em que apresentou seu relatório final, que apontou um total de 434 vítimas mortas ou desaparecidas e 377 agentes do Estado ou pessoas a seu serviço envolvidas em graves violações de direitos humanos. Uma das recomendações é a punição de agentes públicos. A comissão entendeu que a Lei de Anistia não poderia proteger os autores de crimes contra a humanidade.
Reportagem da edição desta semana de VEJA mostrou que, pela primeira vez, um agente pode ser sentenciado por violações na ditadura. Conhecido como Carlinhos Metralha, Carlos Alberto Augusto, ex-agente do Dops (Departamento de Ordem Política e Social), é acusado de ser o responsável pelo desaparecimento do ex-fuzileiro naval Edgard de Aquino Duarte — seu processo aguarda apenas a sentença na Justiça Federal de São Paulo. Procuradores integram o grupo de Justiça de Transição do MPF, responsável por tentar desde 2012 criminalizar agentes da ditadura apesar da Lei de Anistia, de 1979. Das 48 denúncias feitas, apenas três resultaram em ação penal — e a de Carlinhos Metralha é a primeira que vai a julgamento.
As ações do MPF para responsabilizar agentes da ditadura foram protocoladas Brasil afora mesmo depois que o Supremo Tribunal Federal (STF) já havia rejeitado, em abril de 2010, a revisão da Lei da Anistia por sete votos a dois. Isso porque o MPF se ampara em outra sentença, ocorrida logo depois da análise do Supremo. Em novembro de 2010, o Brasil foi condenado por violações de direitos humanos pela Corte Interamericana de Direitos Humanos, no caso da “Guerrilha do Araguaia”. Segundo essa decisão, o Estado deve perseguir criminalmente os agentes civis ou militares da repressão, aplicando a eles as correspondentes sanções penais. Houve ainda o entendimento de que, por se tratar de violações graves de direitos humanos, o Estado não poderia aplicar a Lei de Anistia em benefício dos autores ou adotar a prescrição para eximir-se da obrigação de investigar. Em 2018, a Corte Interamericana de Direitos Humanos voltou a condenar o Estado brasileiro, desta vez pela falta de investigação, julgamento e punição aos responsáveis pela tortura e assassinato do jornalista Vladimir Herzog, em 1975.
“Os juízes olham para 2010, com a decisão do Supremo, sem se importar com a decisão da Corte Interamericana de Direitos Humanos. Por isso, das 40 ações, poucas têm algum andamento. O MPF mudou o pensamento de uma forma impactante, mas o Judiciário continua se atendo ao que o STF decidiu em 2010”, afirma Peluso.
Esse contexto faz com que essa recomendação seja uma das que pouco avançaram. Outra recomendação — a primeira delas — é para que as Forças Armadas reconheçam sua responsabilidade institucional pelos abusos ocorridos na ditadura, o que não ocorreu. Nada mudou no que se refere à alteração dos concursos públicos para as forças de segurança, à modificação do currículo das academias militares e policiais, à desvinculação dos IMLs (Institutos Médicos Legais) das Secretarias de Segurança Pública ou à melhoria no sistema prisional e no tratamento dado ao preso. Não houve também a revogação da Lei de Segurança Nacional, adotada na época do regime militar e ainda vigente. Ela define os crimes contra a segurança nacional e a ordem política e social, estabelecendo seu processo e julgamento.
Sem alterações também em outras recomendações, como a que pedia mudança das leis para punir crimes contra a humanidade e desaparecimentos forçados; a desmilitarização das polícias militares estaduais; e a extinção da Justiça Militar estadual. As manutenções dos trabalhos da CNV e da busca por corpos também não prosperaram, assim como a ampliação da abertura dos arquivos militares.
Entre as poucas recomendações que saíram do papel estão as mudanças nos registros de óbito das vítimas da ditadura militar e a introdução da audiência de custódia, em que os presos são apresentados a um juiz em até no máximo 24 horas após a prisão, com o objetivo é dificultar a prática de abusos. A criação de mecanismos de prevenção e combate à tortura também ocorreu. “O presidente Jair Bolsonaro tentou esvaziar, mas foi contido”, afirmou o pesquisador.
Além das recomendações da CNV, o pesquisador acompanha a tramitação das ações na Justiça que visam à punição de agentes da ditadura. Para ele, o Supremo já poderia ter voltado a rediscutir a Lei da Anistia. Primeiro, porque o julgamento do caso não foi completamente encerrado em 2010 e segundo porque, em 2014, outra ação, proposta pelo PSOL, questiona os efeitos da Lei da Anistia. Para completar, na última segunda-feira, dia 8, o MPF apresentou um recurso para levar ao STF a discussão sobre uma denúncia movida contra cinco militares pelo assassinato do então deputado federal Rubens Paiva no período da ditadura militar. Nesse recurso, a Procuradoria pede para o Supremo rediscutir a compatibilidade entre a Lei da Anistia e a Constituição brasileira.
“Se continuarmos a movermos as ações em todas as esferas e o Supremo modificar o entendimento, teremos chances de êxito real”, afirma a subprocuradora-geral da República Luiza Frischeisen.