Lula se movimenta para evitar repetir erros do passado no Congresso
Petista já declarou que não se meterá na próxima eleição para o comando da Câmara e abriu negociação para apoiar a reeleição de Arthur Lira
Desde a sua primeira experiência no governo federal, o PT enfrentou problemas nas eleições para o cargo de presidente da Câmara dos Deputados. Em 2005, no primeiro mandato de Lula, o partido e a base governista racharam, lançaram-se numa disputa fratricida e, assim, abriram espaço para a vitória de Severino Cavalcanti, deputado de baixo clero e figura histórica do Centrão. Em 2015, no segundo mandato de Dilma Rousseff, petistas estrelados tentaram derrotar o MDB, legenda do então vice-presidente Michel Temer, mas fracassaram no páreo, vencido pelo deputado Eduardo Cunha. Cada uma dessas derrotas resultou em dificuldades para os presidentes da República de turno, sendo a mais conhecida delas a abertura do processo de impeachment contra Dilma. Eleito para o seu terceiro mandato no Palácio do Planalto, Lula conhece essas histórias nos detalhes e, aparentemente, fará de tudo para não repeti-las. Ele já declarou que não se meterá na próxima eleição para o comando da Câmara, pediu ao PT para que não lance candidato ao posto e abriu negociação para apoiar a reeleição de Arthur Lira (PP), um dos principais aliados de Jair Bolsonaro.
A postura de Lula indica que ele aprendeu com alguns erros do passado (os políticos, ao menos) e revela uma dose de pragmatismo. Hoje, Lira é franco favorito para conquistar mais dois anos de mandato à frente da Câmara porque a composição da Casa na próxima legislatura será de maioria conservadora e de direita, porque os partidos que apoiaram Lula elegeram apenas 122 dos 513 deputados e, principalmente, porque Lira controla uma fatia considerável das verbas do orçamento secreto, que fomentam o seu prestígio entre os colegas. Até agora, não há sequer adversário para ele na eleição marcada para fevereiro. “O Arthur Lira ganhará de qualquer maneira. No amor ou com dor, caso o futuro governo e o PT queiram disputar com ele”, diz um dos políticos mais experientes do país, que pediu para não ser identificado. “O Lula não pode transformar o Arthur em líder da oposição”, acrescenta. O presidente eleito parece concordar com essa análise. Em sua primeira visita a Brasília após a eleição, ele se encontrou com Lira na residência oficial do presidente da Câmara e disse que não tentaria influenciar a sucessão na Casa. Já o anfitrião, também conhecido pelo pragmatismo, anunciou a disposição de colaborar com a futura administração.
Estavam iniciadas, assim, as conversas entre eles para a aprovação da PEC da Transição — cujo objetivo é tirar do limite do teto de gastos despesas para financiar, por exemplo, o benefício de 600 reais do Auxílio Brasil — e também para que o presidente eleito e o PT não atrapalhem a reeleição de Lira. Se depender de Lula, o partido fará parte do bloco que apoiará a recondução do deputado e, como integrante dessa aliança, terá o direito de indicar o futuro presidente da Comissão de Constituição e Justiça (CCJ), a mais importante da Câmara. “A priori, nós vamos compor com o Lira e reivindicar a CCJ, até porque parte dos nossos aliados já está com ele. Não dá para tentar formar outro bloco para disputar e perder”, diz um integrante da equipe de transição. O desafio de Lula será convencer alguns de seus aliados a seguir o plano traçado para a Câmara. Entre eles, o senador Renan Calheiros (MDB), que é adversário figadal de Lira, com quem disputa poder no estado de Alagoas. Renan quer construir um bloco com partidos de esquerda e de centro a fim de impedir a reeleição do rival. Em suas contas, seria possível reunir mais de 300 deputados nessa empreitada, quantidade suficiente para ganhar a eleição.
O candidato desse grupo alternativo poderia ser Eunício Oliveira (MDB), ex-presidente do Senado que é aliado de Lula e foi eleito deputado federal em outubro. O presidente do União Brasil, Luciano Bivar, também anunciou a intenção de concorrer ao comando da Câmara e poderia ser considerado para a missão. Por enquanto, Lula resiste a comprar a ideia de Renan porque muitos dos parlamentares dos partidos de centro certamente trairiam a cúpula de suas legendas para votar a favor da reeleição de Lira. A operação, portanto, embute um risco que o presidente eleito não está disposto a correr. Na atual conjuntura política, em que a direita mostra força e a esquerda é minoria no Congresso, Lula entende que é melhor compor com Lira do que pagar para ver, perder e tê-lo como inimigo. “Se o presidente tiver memória, ele não cometerá o mesmo erro”, afirma um profundo conhecedor da alma parlamentar. Em 2003, no primeiro ano de mandato de Lula, o petista João Paulo Cunha foi eleito presidente da Câmara por ampla maioria de votos. Depois, foi condenado e preso por envolvimento no escândalo do mensalão.
Em 2005, ainda no primeiro mandato de Lula, dois petistas concorreram à presidência da Câmara, Luiz Eduardo Greenhalgh e Virgílio Guimarães. A disputa entre eles abriu caminho para um azarão, Severino Cavalcanti (PP), que acabou vencendo Greenhalgh no segundo turno e depois renunciou após ser flagrado em um esquema de corrupção. Em 2007, houve nova divisão, com Aldo Rebelo, então no PCdoB e candidato à reeleição, enfrentando o petista Arlindo Chinaglia, que levou a melhor. Na época, vários governistas declararam que a base tinha sangrado, mas Lula deu de ombros, retrucando que um pouco de mercúrio resolveria os problemas. A fatura decorrente desse tipo de entendimento seria cobrada anos depois. Em 2015, Dilma tentou evitar a eleição de Eduardo Cunha para a chefia da Câmara, mas fracassou. Após a derrota dela, alguns petistas tentaram negociar um acordo entre a então presidente e o deputado emedebista, mas as desconfianças e a antipatia de parte a parte impediram o acerto. O resto da história é conhecido, inclusive por Lula, que tentou, em vão, salvar o mandato da sucessora.
O presidente eleito não morre de amores por Arthur Lira. Longe disso. Mas ele sabe do peso de um presidente da Câmara no jogo político. Além de ser o segundo na linha sucessória, o ocupante do cargo pode viabilizar ou inviabilizar um mandato. Cunha comandou o impeachment de Dilma, enquanto Lira engavetou mais de uma centena de pedidos de destituição de Bolsonaro. Algumas vezes, o presidente da Câmara tem mais ascendência sobre os deputados do que o próprio presidente da República. Se quiser, ele pode ajudar o mandatário acelerando a tramitação de projetos considerados prioritários, como a PEC da Transição, mas também pode atrapalhar, ao dar fôlego a pautas-bomba e constranger integrantes do governo com pedidos de convocação e até de abertura de CPIs. Lula já terá a oposição ferrenha de Bolsonaro e de seus seguidores com ou sem mandato parlamentar. Nesse contexto, ele alega que compor com Lira é um mal menor e necessário. Resta apenas definir as bases do acordo entre as partes. Pode ser só coincidência, mas o presidente eleito e petistas graduados pararam de falar da promessa de acabar com o orçamento secreto.
De olho na próxima eleição para presidente da Câmara, Lula age inspirado nos precedentes, muitos dos quais abriram feridas nos governos do PT. As lições foram aprendidas nesse caso, mas não em outros, como ficou claro na viagem do presidente eleito ao Egito. Ele embarcou a bordo de um jato Gulfstream de José Seripieri Filho, empresário do ramo de saúde privada que chegou a ser preso, fez delação premiada e aceitou pagar 200 milhões de reais de multa ao reconhecer sua participação num esquema de financiamento ilegal de campanhas. Quando a carona se tornou pública, alguns petistas protestaram, entoando a ladainha de que na crítica ao presidente eleito havia ecos de perseguição, tentativa de desestabilização do futuro governo e até de golpismo. O comportamento de manada não é exclusividade da extrema direita. Já outros petistas admitiram o óbvio em conversas reservadas: Lula incorreu num comportamento inadequado ao se valer de um favor de um empresário com interesses no governo. Inadequado e incompreensível, já que o petista foi preso e proibido de disputar a eleição de 2018 por ter recebido favores de empreiteiros que detinham contratos bilionários com a administração federal. Com experiência de sobra, o petista parece ter aprendido com os precedentes das eleições da Câmara, mas ainda escorrega quando o assunto é a necessária separação entre agentes públicos e interesses privados.
Publicado em VEJA de 23 de novembro de 2022, edição nº 2816