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Livro ‘Os Onze’ devassa a intimidade do STF

Perfil saboroso do principal tribunal do país, obra mostra uma corte cindida em personalidades autossuficientes e sob permanente fogo da política

Por Jerônimo Teixeira Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO Atualizado em 2 ago 2019, 14h42 - Publicado em 2 ago 2019, 07h00

Hoje decano do Supremo Tribunal Federal, Celso de Mello foi no­mea­do ministro da Corte máxima do país pelo presidente José Sarney em 1989. Sua sabatina no Senado — ri­tual de aprovação parlamentar exigido a todos os indicados — quase não ganhou atenção na imprensa diária. A Folha de S.Paulo publicou uma reportagem de um quarto de página sobre o tema, que foi ignorado por O Globo e O Estado de S. Paulo. Lentamente se adaptando às funções ampliadas que a Constituição de 1988 lhe designara, o STF era ainda uma instituição discreta, que não costumava entrar na arena política. Em 2015, quando Dilma Rousseff apontou Edson Fachin para a vaga aberta pela aposentadoria do relator do mensalão, Joaquim Barbosa, a atenção da imprensa foi bem maior: todos os três jornais deram manchete à sabatina do novo ministro. O STF agora era a corte que havia julgado o mensalão, que estendera aos gays o direito à união estável, e, sobretudo, a instância judicial que homologava as delações premiadas da Lava-Jato. Esse novo Supremo, sob permanente bombardeio crítico e cindido por disputas intestinas entre seus ministros, é devassado em Os Onze, detalhada e saborosa crônica das atividades do STF neste século, escrita por Felipe Recondo e Luiz Weber.

Os autores são jornalistas escolados na cobertura das atividades do STF — Weber, na sucursal de Brasília da Folha de S.Paulo; Recondo, no Jota, site especializado em temas jurídicos. O livro vale-se de entrevistas com 33 ministros do STF, incluindo aqueles que compõem a Corte atualmente (são onze, daí o título do livro), além de juízes de instâncias inferiores, advogados, políticos, ministros. Não é propriamente uma história do STF, mas um perfil aprofundado de uma corte atravessada por conflitos e contradições que por vezes eclodem com fragor em meio à civilidade protocolar de suas sessões plenárias. Tal foi o caso da sessão de março de 2018 em que, no meio de uma discussão que se anunciava técnica e aborrecida — tratava da constitucionalidade de uma lei sobre doações eleitorais —, o ministro Gilmar Mendes lançou críticas e provocações a seus pares, até atacar Luís Roberto Barroso por ter tentado embutir a liberação do aborto em uma decisão da Primeira Turma do Supremo. A resposta exaltada de Barroso entrou para o folclore do Supremo: “Você é uma pessoa horrível”, ele disse a Mendes. “Uma mistura do mal com o atraso e pitadas de psicopatia.”

OS ONZE – de Felipe Recondo e Luiz Weber (Companhia das Letras; 376 páginas; 59,90 reais ou 39,90 em versão digital) (./Divulgação)

O exuberante ataque de Barroso a Mendes acabou transformado em meme, como seria inevitável na era das redes sociais. Também foi musicado: em um dos muitos episódios de Os Onze em que os personagens são flagrados fora de expediente, libertos das constrições da toga, Barroso aparece em um restaurante de Paraty, cantando, para uma plateia de jornalistas, o “mistura do mal com o atraso” em ritmo de samba. As diferenças entre Mendes, o juiz “garantista” que ganhou a fama (os autores de Os Onze não avaliam se justa ou injusta) de ser demasiado generoso na emissão de habeas-corpus para políticos enrolados, e Barroso, o “ativista jurídico” que tenta avançar, em suas sentenças e liminares, as pautas que considera “iluministas”, são talvez as mais notórias e barulhentas na atual configuração do STF. E as brigas entre ministros com frequência se devem mais a choques de personalidade do que a questões doutrinárias. Recondo e Weber desvelam um Supremo no qual cada membro é uma ilha autossuficiente que mal se comunica com suas vizinhas (“no STF, é cada um por si”, diz o ministro Ricardo Lewan­dowski). E acusam uma certa leviandade no modo como esses ministros insulares perseguem sua agenda idiossincrática valendo-se da prerrogativa de conceder liminares monocráticas.

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O livro começa pela morte de Teori Zavascki, em 2017, que seria um marco: a colegialidade do Supremo desmanchava-se de vez ali. Fazia apenas cinco anos que o ministro catarinense estava no STF quando o jatinho em que viajava caiu no mar, nas proximidades de Paraty. Ele não tivera a chance de presidir a Casa, mas, na sua atuação como relator da Lava-Jato, havia dado passos firmes para manter sua coesão institucional. Quando o STF expediu, em 2015, a ordem de prisão cautelar do senador Delcídio do Amaral, Zavascki teve o cuidado de acertar com seus companheiros de toga uma posição conjunta sobre a decisão — seria, afinal, a primeira vez em que o Supremo mandava prender um parlamentar no exercício de seu mandato. Por contraste, a recente decisão de Dias Tof­foli, atual presidente da casa, de instaurar um inquérito para investigar ataques à Corte, designando Alexandre de Moraes para conduzi-lo (“e o delegado que eu arranjei?”, disse Tof­foli a amigos), foi tomada à revelia dos outros nove ministros.

Os Onze é um livro crítico, inventariando contradições, idiossincrasias ou atitudes um tanto cavilosas de quase todos os personagens. Flagra Facchin em um encontro sigiloso com José Eduardo Cardozo, ministro da Justiça de Dilma Rousseff, às vésperas de uma decisão fundamental sobre o processo de impeachment da presidente; Barroso pedindo ao amigo Kakay, advo­gado criminalista de vários políticos acusados de corrupção, que recuse Eduardo Cunha como cliente; Luiz Fux consultando o procurador-­geral Rodrigo Janot para se certificar de que seu nome não aparecia em delações da Lava-Jato por sua ligação com o ex-governador do Rio Sérgio Cabral; Cármen Lúcia, como presidente da Corte, faltando a reuniões acordadas com outros ministros para fugir da responsabilidade de colocar a prisão após condenação em segunda instância na pauta. De outro lado, a narrativa também aproxima o leitor de seus personagens togados, oferecendo breves vislumbres de sua vida privada — por exemplo, Mendes e Fux encontrando-se por acaso na fila de atendimento do médium João de Deus (o episódio ocorreu meses antes da revelação de seus casos de abuso sexual). No conjunto, o livro transmite ao leitor o fascínio dos autores pelos meandros da instituição que se dedicaram a examinar. O Supremo hoje talvez seja visto mais como um agente político do que como uma corte constitucional, e não estranha que já se multipliquem, no Senado, pedidos de impeachment contra seus ministros (na terça-feira 30, aliás, um pedido de impeachment contra Dias Toffoli foi protocolado por um grupo de procuradores, acompanhados da deputada estadual de São Paulo Janaina Paschoal). Recondo e Weber encerram o livro afirmando o que talvez nem precisasse ser dito: a crítica honesta que Os Onze constrói pretende servir ao aprimoramento do Supremo, pois qualquer tentativa de debilitá-lo conduz ao arbítrio. O STF não é uma instituição que um cabo e um soldado possam fechar.

Publicado em VEJA de 7 de agosto de 2019, edição nº 2646

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