João Doria: “É triste ter um presidente assim”
Em entrevista exclusiva, o governador comenta pela primeira vez a polêmica da CoronaVac e critica a comemoração de Bolsonaro pela interrupção dos testes
O Brasil não para de surpreender o mundo em tempos de Covid-19, quase sempre pelos aspectos negativos. Desde o início da semana, a imprensa internacional voltou seus olhos para o Palácio dos Bandeirantes. Até a manhã da quarta 11, João Doria, atual ocupante do endereço, já havia recebido pedidos de entrevistas de alguns dos principais jornais do mundo, a exemplo do The New York Times, do Financial Times e do The Wall Street Journal. O assunto era a espantosa polêmica surgida em torno do desenvolvimento da vacina patrocinada pela gestão do tucano em parceria com os chineses da Sinovac. O caso explodiu na noite de segunda, quando a Anvisa tomou a decisão açodada e radical de interromper os testes clínicos do imunizante sob a justificativa de que não foram dadas as devidas explicações para um “evento adverso grave” ocorrido nos testes com os voluntários.
Na manhã do mesmo dia em que se ordenou a paralisação do estudo, o que jogou uma enorme sombra de dúvidas sobre a vacina, Doria havia anunciado a chegada de 120 000 doses dela daqui a uma semana e outros 6 milhões até dezembro. “Não foi coincidência”, afirmou o governador a VEJA. “Ficou claro que a decisão da Anvisa foi motivada por uma orientação ou pressão exercida pelo Palácio do Planalto.” A medida inesperada gerou também uma imediata reação de revolta dos especialistas do Instituto Butantan, o braço técnico do governo paulista que é responsável pelo estudo por aqui e irá produzir o medicamento para distribuição, assim que ele for aprovado. Houve indignação também nos meios acadêmico, político e jurídico. Vozes mais exaltadas voltaram a falar em impeachment e o caso chegou ao STF, que cobrou explicações à Anvisa.
As atitudes de Bolsonaro no dia seguinte ao do anúncio da interrupção abrupta da pesquisa deixaram explícito que o presidente se sentiu vitorioso com o percalço da vacina patrocinada pelo governador, a quem enxerga como rival político em sua pretensão de se reeleger em 2022. Ficou em segundo plano para o capitão o problema envolvendo um medicamento que pode salvar vidas em um país onde já foram enterradas mais de 160 000 pessoas devido ao coronavírus. Na mais constrangedora e chocante manifestação dele desde o início da pandemia, o presidente escreveu o seguinte em uma rede social: “Esta é a vacina que o Doria queria obrigar a todos os paulistanos a tomá-la”. Como que para não haver dúvida de como enxerga a questão, completou: “Mais uma que Jair Bolsonaro ganha”. Dessa forma, na mesma semana em que o mundo comemorou um avanço significativo de um imunizante da Pfizer (segundo a fabricante, ele tem 90% de eficácia), por aqui o líder da nação exultou o percalço de outra frente bastante promissora de pesquisa. Horas depois, em um evento no Palácio do Planalto, Bolsonaro voltou a recitar sua cantilena negacionista, chamando de “maricas” os brasileiros que tomam cuidados para não ser contaminados.
Não foi a primeira vez que a CoronaVac gerou stress entre o governo federal e o Palácio dos Bandeirantes. No mês passado, o Ministro da Saúde, Eduardo Pazuello, chegou a firmar um compromisso de compra da vacina com Doria, mas acabou sendo desautorizado pelo presidente logo em seguida. No imbróglio mais recente, o constrangimento com relação às atitudes de Bolsonaro e as suspeitas sobre ingerência política na Anvisa foram aumentando à medida que surgiram mais informações sobre o que seria o “evento adverso grave”. O caso em questão envolvia a morte de um voluntário da CoronaVac, que foi registrada no boletim de ocorrência como “suicídio consumado”. Dentro do prazo previsto pelos protocolos, o Butantan notificou a Anvisa na sexta passada, 6, dizendo de forma sucinta que o episódio não tinha relação alguma com a vacina. Com a justificativa de que o sistema havia ficado fora do ar por culpa de um ataque hacker, a Anvisa só cobrou maiores explicações a partir da tarde da segunda 9. O Butantan retransmitiu por volta das 18 horas a mensagem que havia enviado no dia 6. O diretor presidente da Anvisa, Antônio Barra Torres, considerou as informações “insuficientes e incompletas”. Às 20h47, a Anvisa convocou os técnicos do Butantan para uma reunião emergencial na terça, sem detalhar o assunto. Pouco mais de dez minutos depois, enviou um novo ofício ao instituto determinando a interrupção dos testes clínicos. “Não custava nada ter ligado e pedido mais informações antes de decidir pela interrupção. É normal a agência contestar, o anormal foi a forma como isso foi feito”, reclama Dimas Covas, diretor do Butantan. O instituto já aplicou doses da CoronaVac em mais de 10 000 voluntários, sem registros até aqui de efeitos colaterais graves. Na quinta 12, um laudo confirmou a morte do voluntário por intoxicação química, provocada por consumo de álcool, sedativos, opioides e analgésicos potentes.
Mesmo após a divulgação dos detalhes do “evento adverso grave” e de apoios importantes à continuidade dos testes, incluindo o do Comitê Internacional Independente, que analisa os estudos da vacina, a diretoria da Anvisa só liberou a volta da pesquisa na manhã da quarta 11. Poucos minutos antes desse anúncio, Doria falou pela primeira vez sobre o episódio. Na conversa, bateu firme em Bolsonaro, chamando-o de “irresponsável”, e disse que, em caso extremo de alguma tentativa de boicote à aprovação da CoronaVac, irá levar a discussão à Justiça.
O que achou da postura da Anvisa no episódio? Nem a própria Anvisa acreditou naquilo que propagou. Ficou claro que a decisão foi motivada por uma orientação ou pressão exercida pelo Palácio do Planalto. Foi um fato inédito na história da agência. Espero que ela volte ao caminho de antes — de garantir a segurança, mas também a celeridade do processo, sem fazer escolha de vacinas.
O senhor tem alguma prova de que houve ingerência política no caso? É uma análise das circunstâncias. A interrupção foi uma decisão extemporânea, sem diálogo com o Butantan, que aconteceu no mesmo dia em que se anunciou em São Paulo a chegada do primeiro lote de vacinas. Foi um ato inadequado, que causou constrangimentos ao mundo científico e até dentro da própria Anvisa.
Como ficará a relação entre o seu governo e a Anvisa a partir de agora? Até esse equívoco havia uma confiança na autonomia da agência. O episódio recente mudou essa percepção. Se ela for comandada pelo Planalto, passará de agência de vigilância sanitária para de vigilância ideológica.
O Butantan não está também sob forte pressão de seu governo para conseguir a vacina? Eu não interfiro na ciência, eu obedeço a ciência. Não gero nenhuma interferência nos estudos e na conduta do instituto.
Qual sua opinião sobre o comentário do presidente festejando a suspensão da vacina? Ele é um irresponsável. Eu me decepcionei mais do que me surpreendi. Foi chocante, não só para o Brasil, mas para o mundo. Mais de sessenta veículos de mídia publicaram reportagens condenando a posição do presidente. Não se pode celebrar a morte e comemorá-la como se fosse uma vitória. Não se comemora uma morte, se chora por ela. Bolsonaro classificou de covardes as pessoas que não estão saindo para garantir a sua sobrevivência. Ele chamou de “maricas” quem está protegendo a própria saúde, a dos familiares e a dos amigos. É triste termos um presidente assim.
Além desse episódio, o governo federal tem dificultado o desenvolvimento da CoronaVac em outras frentes? O governo federal prometeu 84 milhões de reais para a fábrica do Butantan que irá produzir aqui o imunizante. Até agora, não deu. Não entendo porque a Fiocruz, que é uma instituição federal respeitadíssima, já tem à disposição 1,9 bilhão de reais para a compra das doses do seu programa com a vacina de Oxford ou para a ampliação da fábrica, e o Butantan, que é tão respeitável quanto, não tem nada ainda. Que procedimento é esse que estabelece condições privilegiadas a um em detrimento de outro? Cadê a equidade e o senso de justiça?
O Ministro da Saúde, Eduardo Pazuello, não se manifestou sobre a polêmica da CoronaVac. Como está a relação do governo de São Paulo com ele? A relação segue boa e fluida, mas talvez, agora que eu falei isso, o Bolsonaro vá adverti-lo. Obviamente, Pazuello tem sido pressionado pelo presidente. Mas com a gente sempre teve uma atitude republicana e de diálogo. Não podemos transformar a corrida da vacina em uma guerra, pois o mais prejudicado será o brasileiro. A corrida não é pela vacina, mas pela vida e pela vida precisamos de várias vacinas. Talvez no Brasil sejam necessárias pelo menos quatro vacinas para imunizar os quase 215 milhões de habitantes.
Considerando o que acabou de ocorrer, o senhor ainda acredita que a CoronaVac será adotada pelo governo assim que estiver pronta? Sim. Nunca houve problema no sistema nacional de imunização desde que foi criado, há cinquenta anos, dos governos militares aos de esquerda. Nunca houve esse posicionamento ideológico, partidário, eleitoral que está acontecendo hoje no Brasil. Na vacina contra a gripe ou o H1N1, que foram produzidas pelo Butantan, ninguém questionou se era chinesa, inglesa, portuguesa. Ninguém toma o medicamento pela sua origem.
O senhor havia dito anteriormente que a vacina já estaria pronta em dezembro. Esse prazo não é irreal? Eu mencionei que era uma expectativa, não coloquei como definitivo. Houve um atraso por parte da Anvisa na liberação da importação das doses da vacina chinesa, que foi denunciado até pelo Dimas Covas, o diretor do Butantan. Agora, eles liberaram, e o primeiro lote importado chega em uma semana. Os acontecimentos recentes também podem ter impacto no cronograma da pesquisa. Gostaríamos de começar a vacinar em dezembro, mas agora isso só será possível no início de 2021.
A decisão pela suspensão não abala a credibilidade da vacina e chamusca a imagem do Butantan? Não. Pelo contrário, eu acho que o Butantan sai valorizado. Ele é o maior produtor de vacinas da América Latina e um dos maiores do mundo. Fez o que tinha de fazer. Quem fugiu a esse princípio foi a Anvisa. Estamos numa pandemia, que exige medidas rápidas e eficientes. São 400 brasileiros que vão a óbito todo dia. É quase três aviões que caem todo dia levando todos os seus ocupantes. É preciso ter celeridade e segurança. Não se pode protelar a aprovação de uma vacina por fatores que não são técnicos e científicos.
O senhor está buscando outros apoios para vencer essa guerra da vacina? Se continuar com esses problemas, o caminho obviamente será o da judicialização. Tivemos a manifestação do ministro Ricardo Lewandowski no sentido de pedir mais informações sobre o caso da CoronaVac à Anvisa, uma ação provocada pelo Partido Verde. Não será apenas o governo paulista, mas instituições, partidos, democratas e pessoas de bem que recorrerão ao STF para proteger as suas vidas.
E quais seriam os caminhos da judicialização? Acionar o STF, usando principalmente a lei 13 979, que permite a importação e o uso de medicamentos autorizados por agências reguladoras internacionais. Mas nós não temos vocação para a ruptura. O diálogo e o entendimento serão sempre o melhor caminho para chegar a um bom termo, mesmo com o governo Bolsonaro.
Há uma percepção de que o senhor antagoniza com o presidente na questão da vacina justamente para gerar palanque para 2022. Como responde a isso? Quem adotou o caminho da politização e da ideologia foi o presidente Bolsonaro. Eu faço a defesa da vida e da ciência desde o início do ano. Em 26 de fevereiro, quando se confirmou o primeiro caso de Covid-19, criei um comitê com dez médicos. Aliás, essa foi a primeira medida anunciada pelo presidente eleito dos Estados Unidos, Joe Biden — a construção de um comitê científico para orientar o trabalho do governo americano. Nós fizemos isso em fevereiro, contrariamente à postura de Bolsonaro.
Tendo em vista que há sempre uma reação aos seus anúncios nas coletivas diárias ocorridas no Palácio dos Bandeirantes, não seria melhor aparecer menos para evitar a politização do tema? Vou recomendar ao presidente que não sonhe comigo todas as noites, porque ele dorme e acorda pensando em mim. Espero que tenha outras coisas para pensar, como cuidar do Brasil, e não só em eleição.
Bolsonaro acredita que o senhor será um dos seus maiores rivais em 2022. O senhor vai ser esse candidato? Não é hora de falar de eleição, é hora de tratar a população e, com a vacinação, retomar a economia. Deixe 2022 para 2022. Agora, não.
Como avalia a gestão de Bolsonaro durante a pandemia? Lamentável. A posição negacionista dele prejudica a saúde dos brasileiros e dificulta o trabalho dos médicos há dez meses. Ele contraria até os seus assessores mais próximos, pessoas que tentam colocar algum bom senso nele. Meu desejo era que ele mudasse de posição, ainda há tempo de adotar um comportamento de paz e entendimento, mas, se não for possível nos próximos dois anos, talvez seja num novo governo eleito democraticamente a partir de 2022.
O senhor acredita que a eleição de Joe Biden pode moderar o presidente? A eleição de Biden vai influenciar positivamente o Brasil. Sem dúvida. Jair Bolsonaro perde a sua grande referência, Donald Trump. Ele terá agora de conviver com uma postura diametralmente oposta à que tanto idolatrou. Biden é um homem centrado, equilibrado, que defende os temas ambientais, não é dado aos extremos e a atitudes revanchistas.
O que achou da recente movimentação para encontrar um candidato de centro, incluindo a aproximação entre Luciano Huck e Sergio Moro? É legítimo e democrático que se pense no futuro do Brasil, não em eleições. É preciso construir uma coalizão ampla para a construção de um projeto de novo Brasil, mas não amparado em nomes. É preciso ter diálogo, humildade, discernimento e capacidade de agregar valores da esquerda, da direita e do centro democrático liberal na cultura, na política, no meio ambiente, na atividade empresarial e nos setores sociais. É preciso construir uma frente pelo bem do Brasil. Isso é legítimo e não depende de eleição, mas de atitude. E essa atitude eu defendo.
Publicado em VEJA de 18 de novembro de 2020, edição nº 2713